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'Quero honrar vida que me foi devolvida', diz sobrevivente de Capitólio

Juliana Linhares

Colaboração para Universa, de São Paulo

19/06/2022 04h00

Em janeiro deste ano, a advogada mineira Isabel Martins da Costa foi passar as férias com amigos e familiares em Escarpas do Lado, um bairro de Capitólio. O que era pra ser um divertido tour de lancha pelo Lago de Furnas tornou-se um episódio que parecia saído de filme: uma imensa pedra desprendeu-se do cânion e desmoronou na água. O acidente deixou dez mortos e mais de 30 feridos, entre eles, Isabel.

Durante a queda da pedra, Isabel abriu os braços e protegeu 5 crianças com seu corpo - salvando a vida de todos eles. .Ela nem percebeu, mas sua orelha direita e parte do seu rosto foram arrancadas naquele momento — ela levou cerca de 200 pontos na cabeça. "Se eu tivesse perdido qualquer uma daquelas crianças eu teria sobrevivido mas não teria voltado a viver. Uma parte de mim teria ido embora", contou, durante o painel "Você Não Está Só", comandado pela jornalista Juliana Linhares, durante o sexto Universa Talks realizado na última terça-feira (14).

Sobreviver a grandes tragédias ou desastres, tendo a vida diretamente posta em risco pode trazer a sensação de que não haverá recomeço possível. Como essa jornada é possível? Com gratidão, força e otimismo, diz Isabel. "Conto minha história e espero ajudar a que vocês possam rever a vida de uma forma mais leve, enfim, porque merece. Porque de repente ela não está lá mais. Então vamos deixar para se aborrecer num outro mundo, numa outra dimensão."

Leia trechos da entrevista editada a seguir:

Isabel Martins, advogada e sobrevivente da tragédia do Capitólio, em entrevista a Juliana Linhares no Universa Talks 2022: Reencontros - Mariana Pekin/UOL - Mariana Pekin/UOL
Isabel Martins, advogada e sobrevivente da tragédia do Capitólio, em entrevista a Juliana Linhares no Universa Talks 2022: Reencontros
Imagem: Mariana Pekin/UOL

Juliana Linhares: Você pode nos contar do seu ponto de vista, o que você se lembra do acidente?
Isabel Martins: Eu tenho uma lembrança nítida, acho que ela é bem próxima da realidade. Eu nunca mais vi o acidente, nunca mais revi a cena. Algumas pessoas até mandaram o vídeo. Sei lá, não sei qual é essa motivação, mas eu realmente não tive vontade de ver de novo.

Lembro de a gente indo em direção aos cânions, como se ele fosse aquele canto de parede. E a gente percebeu, todo mundo da lancha, que embaixo, como se fosse o rodapé, próximo da água, as pedras estavam se soltando bem devagar, em pedaços pequenos. E uma hora teve uma parte que se soltou mais rápido e uma parte maior.

Então passamos em frente ao cânion. Eu estava aqui de lado, sentada na lancha e a pedra. E a gente viu que ela se descolou em cima. E aí eu olhei e falei: "Gente, não vai cair em cima, mas vai dar ruim". Imediatamente eu levantei, fiquei em cima e falei para os meninos: "Fiquem em cima de mim". E acho que foi a única coisa que eu pensei, e eu pensei muito rápido, e o que eu lembro é disso, é a cena seguinte.

Eu afundei porque a lancha afundou e eu estava sem colete, porque eu sei nadar bem, mas não recomendo, acho que todos devem usar o colete, porque se eu tivesse desmaiado, eu teria morrido, e com o colete não, eu teria boiado. E eu me lembro submergindo nos destroços e olhando, cadê os meninos, todo mundo, as minhas irmãs?

Eu estava com as minhas irmãs, meus sobrinhos, meus cunhados, um casal de amigos com filhos e a gente foi nadando até a beirada para que os meninos ficassem na pedra até que viesse o socorro. Foram cinco crianças— foram três sobrinhos e dois filhos desse casal amigo, são dois irmãos.

Você pensou para fazer isso?
Foi de instinto. Eu abri as asas, como um falcão. Eu olhei para a pedra e olhei para eles. Falei, preciso salvar a vida desses meninos.

Um amigo me fez uma observação coerente. Ele falou, que se eu tivesse perdido algum deles, de que adiantaria estar viva? Eu acho que se eu tivesse perdido qualquer uma daquelas crianças — porque eram filhos de amigos muito queridos, meus sobrinhos que são como filhos, — e aí realmente de fato eu teria sobrevivido e não teria voltado a viver, embora tivesse os meus filhos, mas uma parte de mim teria ido embora.

Você se machucou bastante, você tomou 200 pontos na cabeça.

Isabel  levou 200 pontos na cabeça e teve de reconstituir o tímpano, mas conseguiu defender 5 crianças, entre sobrinhos e filhos de amigos: - Mariana Pekin/ UOL - Mariana Pekin/ UOL
Isabel levou 200 pontos na cabeça e teve de reconstituir o tímpano, mas conseguiu defender 5 crianças, entre sobrinhos e filhos de amigos:
Imagem: Mariana Pekin/ UOL


Sim. E quando eu submergi, todo mundo me olhava com uma cara de pavor. Eu senti que tinha uma ardência porque essa parte do rosto caiu como se tivesse aberto um zíper, a orelha estava no meu ombro. Eu senti ardência, mas falei: "Gente, eu estou bem".

Por sorte, veio uma lancha particular e eu consegui ser logo atendida. Eu tive o tímpano, o canal auricular e a orelha reconstituídos. Dois dentes ficaram moles, um quebrou, porque a minha arcada entrou para dentro. E eu tive uma lesão na cervical que eu trato com fisioterapia, não precisou de cirurgia.

Minha audição está em 40% e tem uma previsão de uma nova cirurgia que ainda não decidi. Eu ia fazer, porque eu estava naquele pique de recuperação, reabilitação, mas agora, se a minha audição voltar a mais 20%, eu não vou mais operar e me livro das conversas chatas, digo que não ouvi.

O acidente tem cinco meses e depois de dois meses você voltou a ter que cuidar de dois filhos, fazer feira, cuidar do filho que não fez a lição de casa, trabalhar. Você acha que teve tempo de acomodar emocionalmente essa tragédia ou enfiou o pé no acelerador? Pensa que pode ter um rebote emocional daqui a um tempo?
Olha, foi muito impactante a questão das mortes. A gente sabia na nossa lancha que aquelas pessoas tinham morrido muito antes de a notícia sair, porque não tinha escapatória, aquela cena é muito forte. Eu acho que por defesa, talvez, eu não me lembro dela nitidamente.

Eu me lembro da pedra caindo, mas não me lembro do choque na outra lancha. Na verdade, é uma coisa que eu não quero me lembrar.

Coloquei o pé no acelerador, porque eu não tinha outra alternativa, porque eu tenho os meninos. Fiquei me recuperando em Belo Horizonte, tinha minha vida no Rio para cuidar. Tenho outras questões na minha vida que eu preciso resolver, que vinham antes do acidente.

Eu não posso tornar pior o que já não está bom. Essa coisa de: "oh, vida, oh azar" não é comigo. Nunca fui assim, eu não tenho tempo de ser assim porque eu preciso resolver, a vida precisa andar. Eu já tinha se mood antes e com o acidente veio. Até falo, brincando: "Vocês têm colágeno sobrando para perder com isso? Eu não tenho".

O que veio também foi uma questão de autoestima. Parece um surto exacerbado de autoestima o que eu vou falar, mas é isso.

Eu sei agora a mulher que eu sou, do que eu dou conta, do que eu fui capaz de fazer. E a gente demora, não sei se para todo mundo, mas para mim a busca da autoestima, ela é eterna e para mim foi longa. Mas chegou.

Acho que ter sobrevivido a esse acidente, dar conta de tudo, das pessoas me dizendo: "Nossa, mas eu tenho certeza que você vai sair dessa, que você é forte". Quer dizer, as pessoas me viam como uma pessoa forte, que ia dar conta. Então foi bom, porque agora eu também me vejo como essa pessoa que dá conta, que vai resolver e que é forte.

Muitas pessoas que passam por eventos traumáticos têm uma relação com termos que agora ficaram muito famosos, como gratidão, ressignificação... Como você se relaciona com essas palavras?
Antes, eu tinha preguiça. Eu tenho uma amiga qe falava essas coisas e eu ficava meio sacaneando todos essas expressões e clichês que a gente chamava. E aí eu vivi todos eles em dois minutos. E aí eu liguei para essa amiga, a Renata, e falei, pronto, agora não vou poder mais falar mal.

E é isso, é uma coisa de gratidão, realmente de agradecer. Porque agora, uma coisa que eu sinto em relação a gratidão é de honrar essa vida que me foi devolvida.

Todos os médicos que atenderam falaram: "Você deu muita sorte porque um pouquinho acima você teria ficado tetraplégica e no rosto também teria pegado o nervo facial e poderia ficar com o rosto torto". Enfim, teriam outras questões mais prejudiciais.

Então, como não agradecer? Deus falou: "Olha, você vai tropeçar, mas eu vou te dar a mão". E uma outra amiga, também muito religiosa, falou: "Deus, só manda o que a gente dá conta". Eu falei, avisa que ele está me superestimando, que agora já deu, já aprendi tudo, tô bem, não precisa me testar mais, não.

Acho que a gente não precisa ter um acidente, nem uma tragédia na família, uma perda, seja de amigo, de cachorro, de filho — Deus me livre —, para ressignificar, você pode ressignificar a todo momento. E isso é bom, porque além de ressignificar, acho que você vai purificando a vida, vai simplificando as coisas.

E não precisa ser uma coisa ruim, ser clichê, ser cafona.

Você é da turma de pessoas que acham que os acontecimentos da vida têm explicação ou que não? Acha que tem alguma explicação o que te aconteceu?
Eu acho que tem um propósito. Mas, a princípio, ainda não enxerguei ainda o que eu precisava aprender nesse acidente. Talvez seja ressignificar mais, dar mais valor ou perder menos tempo com as coisas menos importantes da vida. Esse acidente é uma peça do meu quebra-cabeça, do quebra-cabeça da minha vida. Eu não acho que é uma coisa aleatória, não.

E você sente agora, no campo prático, que houve diferença nas suas relações amorosas com os seus filhos, com a sua mãe, com o seu namorado?
Não, eu sempre tive ótima relação com a minha mãe e com as minhas irmãs, então acho que eu as amo ainda mais, meus sobrinhos. Eu tinha terminado um namoro dois meses antes do acidente e a gente retomou um pouco depois. Aí veio isso, eu gosto dele, a gente conversou e a gente se perdoou. Então vamos aproveitar disso, né, essa vida me foi devolvida, não vou ficar de picuinha.

Mas ele até falou, a gente briga mais, a gente tem brigado mais do que antes.

Agora eu não deixo passar nada, então tem isso também. Isso mudou, eu não deixo passar nada que me incomode, eu não posso estar numa situação de insegurança, é um gatilho do acidente.

Não virei chata, fiscal de nada, mas o que me incomoda não vou deixar pra lá mais não. Mas continuo leve de alma.

Você pode dar um exemplo?
Por exemplo, chuva. O último barulho que eu lembro é a água. Se estiver chovendo muito, eu não saio de casa, e se eu estou fora de casa, eu preciso voltar para casa. Se eu estou no Uber ou no táxi, vejo que está correndo muito, eu boto o cinto de segurança atrás. Se eu sinto uma pontinha de insegurança e já tomo uma atitude.

O Capitólio era um lugar que você foi muito durante a sua juventude. Você me contou que desde os 15 anos ia lá, deve ter passado um monte de coisa legal lá e queria mostrar para os seus filhos o lugar que você passou a sua juventude. Você quer voltar lá?
Volto, claro. Numa lancha não entro, mas certamente eu quero voltar. Porque eu tenho amigos, meus amigos da minha época de adolescência são os mesmos até hoje, que ainda mantém casas lá.

Mas não vai ser um lugar tão escolhido como foi. Ele vai entrar num improviso "vamos em Escarpas, passar o final de semana?". Se eu estou lá de bobeira, eu vou. Não vai ser mais um escolhido, uma opção como foi, um planejamento todo, aí também não.

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