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Aborto no México: 'Estava em uma relação violenta e não podia ter um filho'

Luciana Taddeo

Colaboração para Universa, de Buenos Aires

23/06/2022 04h00

Feliccia, 31 anos, antropologa, vive na Cidade do México, onde o aborto é legal desde 2007 - Francesca Johnson/UOL - Francesca Johnson/UOL
Imagem: Francesca Johnson/UOL

"Quando descobri minha gravidez, estava vivendo uma relação violenta, tanto física quanto emocional. Foi antes da pandemia, há cerca de dois anos. Por problemas hormonais, eu às vezes não menstruava, então não percebi nas primeiras semanas que poderia estar grávida. Mas senti muitas náuseas, fiz o teste e deu positivo. Eu tinha 28 anos, e a gestação aconteceu por descuido, num momento em que minha ginecologista sugeriu que eu parasse um pouco com o anticoncepcional hormonal oral para dar um descanso ao corpo.

Apesar de o aborto ser legalizado na Cidade do México desde 2007 até a 12ª semana de gestação, eu tinha poucas informações sobre como fazer. Uma amiga tinha abortado, mas não era um assunto tratado tão abertamente, e tive de pesquisar para saber como ter acesso ao procedimento. Meu namorado naquele momento disse que me apoiaria em qualquer decisão, mas ao mesmo tempo era muito ciumento e continuou com a violência emocional.

Ele me acusava de conversar com outras pessoas, de não dar atenção a ele, enquanto eu estava tentando saber como fazer o procedimento e quanto custaria. Ele chegou a me acompanhar em um exame para verificar a gestação, mas acabamos discutindo naquele dia. Contei para a mãe dele da violência psicológica que eu estava sofrendo durante a gravidez, a família se meteu, e o problema aumentou. Terminamos na época, mas acabamos voltando e ficamos juntos por mais um ano.

Durante uma das brigas, ele chegou a me chamar de puta e já tinha havido episódio de agressão física, o que pesou bastante na minha decisão de interromper a gestação. Eu nunca consegui considerar a possibilidade de ter esse filho.

Assunto ainda é tabu

Pesquisei clínicas privadas e públicas, porque, apesar de o acesso ao aborto legal ser relativamente simples na Cidade do México, o serviço de saúde pública não é muito bom. Além disso, esse assunto ainda é tabu. Não sabia como iriam me tratar e fiquei com medo.

Perto de casa há uma clínica materno-infantil do sistema público que pratica interrupções legais da gravidez. Fui até lá, e o processo foi bem simples: eu só precisei de um comprovante de residência da Cidade do México.

Tinha conversado sobre isso apenas com as minhas melhores amigas e estava com medo de contar para a minha mãe, mas acabei dizendo. Ela não só me apoiou como me acompanhou no dia do procedimento. Para agendar foi rápido, marcaram o procedimento para um ou dois dias depois. Só me pediram para levar uma garrafa de 1,5 litro de água e para ir com alguém, o que é obrigatório.

No dia, cerca de dez mulheres estavam lá para interromper a gestação. Eu imaginava que seríamos todas jovens, mas elas tinham idades variadas, inclusive algumas já eram mães. O processo foi longo, acabou demorando cerca de cinco horas. Primeiro, passamos por uma entrevista com uma assistente social que perguntou sobre a minha história familiar, se eu usava algum método anticoncepcional e fez perguntas gerais.

Depois, pouco a pouco, fui realizando os exames, como ultrassonografia, sangue e medição de sinais vitais. Não me deram nenhuma informação, não perguntei nada nem quis olhar para a tela do ultrassom, virei o rosto. Sabia que estava crescendo dentro de mim algo que formei com uma pessoa que eu amava e que achava que me amava. Mas, ao mesmo tempo, estava consciente de que era uma relação abusiva.

Depois dos exames, uma médica me deu Mifepristona, um comprimido de venda regulada, que precisa ser tomado na clínica. Lembro de me darem uma explicação de que eu teria sangramento e cólicas fortes, nada muito extenso, e de me entregarem um folheto com os sintomas que eu poderia ter. Depois, me deram comprimidos de Misoprostol para tomar em casa. Também me passaram uma receita de antibiótico, para que eu não tivesse infecção posterior.

Eu estava com sete semanas de gestação quando interrompi e não recebi mais acompanhamento da clínica naquele dia. É preciso voltar para um novo exame cerca de 20 dias depois do procedimento para verificar se não sobrou nada. E é obrigatório adotar um método anticoncepcional, que pode ser pílula, camisinha, implante, etc. Eu decidi colocar DIU.

Virei 'acompanhanta'

Antes do procedimento, durante minhas pesquisas, eu tinha chegado ao grupo no Facebook do coletivo Aborto Legal no México. Lá consegui o contato de uma pessoa que já havia passado pelo aborto e que agora atuava como 'acompanhanta': alguém que orienta outras mulheres sobre o processo. Não queria passar por isso sozinha, tinha muito medo.

Para me sentir mais segura, decidi abortar na clínica, mas, mesmo assim, pedi que uma delas me acompanhasse. São voluntárias que acompanham, virtualmente, mulheres que querem realizar uma interrupção. Quando tomei os comprimidos em casa, após voltar da clínica, fui contando para a minha acompanhanta cada coisa que acontecia, e ela ia me acalmando, dizendo que era assim mesmo. Respondeu todas as perguntas que fiz e, no momento da expulsão do feto, inclusive, mandei fotos para ela.

Ter sido acompanhada naquele dia por uma pessoa que já havia interrompido uma gestação foi tão importante para mim que, mais ou menos um ano depois, decidi me tornar acompanhanta. Em dois anos, já auxiliei mais de 40 mulheres. Teve senhoras, mulheres que já eram mães e meninas —acho que a menor tinha 14 anos.

Também tinha medo de que, na clínica, me tratassem mal. Tinha receio de sofrer preconceito, mas isso não aconteceu. Infelizmente, esse tema ainda é tabu aqui e, como você já está frustrada, brava, com medo e mil outras emoções, a última coisa que quer é enfrentar isso. Não foi um tratamento excelente, mas foi bom.

Sei que em hospitais maiores há grupos contra o aborto que fazem pressão do lado de fora, mas não vi isso. E acabei me sentindo acompanhada também pelas outras mulheres que estavam lá, passando de um exame para o outro. Chegou a haver um certo clima de amizade, tentávamos conversar umas com as outras, nos apoiar, tornar aquilo mais ameno —e não foi tão ruim quanto eu esperava.

Hoje, sinto-me confortável com esse assunto e sei que tive sorte, porque há meninas de cidades pequenas que têm de fazer aborto escondido, que não conseguem o remédio [a legislação no México varia dependendo da região]. São casos muito complicados, e nós acabamos suprindo essa necessidade, que deveria ser função do Estado."

Feliccia Cisneros, 32 anos, antropóloga na Cidade do México