'Morei como ilegal nos EUA e hoje sou advogada de imigração de famosos'
Por muita insistência da mãe que, sem ter como pagar, batia na porta das escolas de idiomas pedindo bolsa de estudos para a filha, Flávia Lloyd conseguiu aprender outros idiomas, fazer cursinho e passar na faculdade de letras da USP. Com a ajuda da universidade, conseguiu fazer um intercâmbio para os Estados Unidos e o que era para ser um ano fora do país se tornou, hoje, 23 anos.
Nesse período, ela ficou ilegal, dormiu em um abrigo com o filho de apenas quinze dias, trabalhou em todos os tipos de emprego e viveu abaixo da linha da pobreza. Com esforço, ela estudou e se tornou uma advogada de imigração muito importante, que hoje atende a famosos brasileiros famosos como Marco Pigossi, Virgínia e Neguinho da Beija Flor. A seguir, ela conta sua história para Universa.
De ilegal a advogada de imigração
"Venho de uma família muito simples de Santos, meu pai vendia livros em frente a Universidade Católica e a minha mãe sempre foi muito cara de pau. Ela chegava nos lugares, como a Aliança Francesa e o Centro Cultural dos Estados Unidos, e dizia que queria que a filha dela estudasse lá. Quando falavam que iam dar os formulários, ela falava que não tinha como pagar, mas que queria mesmo assim. Foi assim que estudei inglês e francês mesmo sem a gente ter um tostão furado. Eu estudava em escola pública então no cursinho foi a mesma coisa: minha mãe bateu na porta e pediu. Acabei passando na USP.
Em 1999, eu queria ir para os Estados Unidos para aprender inglês, mas não tinha dinheiro para isso. A USP tinha um convênio e todos os trâmites foram feitos pela universidade. Eu não teria como pagar para isso. No fim, consegui e vim passar um ano - que se tornaram vinte e três. Gostei muito, fiz amizades e aprendi tudo. Foi a primeira vez que eu entrei em um avião.
Como vim sozinha para estudar, eu morava na casa de uma família e cuidava das crianças enquanto estudava. No começo eu chorava, queria ir embora. O choque cultural é muito grande.
O começo foi bem difícil, mas fui ficando. Quando chegou a hora de voltar, eu não queria. Mas também não tinha grana para ficar lá. Eu estava namorando, apaixonada, e fui ficando. Mas estava ilegal.
O relacionamento não deu certo e eu estava grávida, tinha que decidir o que ia fazer da vida. Para ser bem honesta, eu não queria voltar para casa com o rabo entre as pernas e com um filho. Eu era a pessoa que seria o sucesso da família, estava vencendo todas as barreiras de cor e status para estar onde estava.
Eu e o pai do Lucas ficamos juntos uns três anos entre indas e vindas. Em uma das idas, fui parar em um abrigo com um bebê de 15 dias para cuidar. Nós dividimos o aluguel do apartamento, mas como ele não pagou o aluguel, precisamos sair de lá.
Eu até fiquei uns dias de favor, mas chegou um ponto que o dono do local disse que eu precisaria ir embora. Então fui para o abrigo. Uma amiga do meu ex viu minha situação, ficou com pena e me tirou de lá. Fiquei de favor na casa dela e de outras pessoas, mas tinha um bom senso que visita incomoda depois de um tempo.
Meu tempo no abrigo foi assustador. Por exemplo, eu não gosto de peixes e frutos do mar. A primeira refeição no abrigo foi peixe. Quando você está com fome, tudo vira comida gourmet. Eu estava em um quarto com várias bicamas, dividindo com outras famílias, o banheiro era nojento...
Eu tinha 22 anos, então estava enfrentando com a cara e com a coragem. Na juventude somos mais destemidos.
"Comecei a trabalhar em vários subempregos"
Para me virar, comecei a cuidar de crianças e limpar casas. Trabalhava com a ajuda de uma agência que atendia brasileiros sem documentos. E como podia levar meu filho comigo era uma vantagem. Eu ganhava menos que um salário mínimo, não tinha como deixá-lo em nenhum lugar.
Eu também escrevia anúncios de marketing. Tinha que escrever uma frase em post it e colocar em envelopes. Para cada mil envelopes eles pagavam 30 dólares. Tudo o que você puder imaginar de subemprego eu tive. Me virei para sobreviver. Eu estava sempre correndo atrás de informação. Se não tinha comida, eu encontrava locais para doação.
"Consegui meus documentos com ajuda da minha sogra"
Eu casei com o pai do meu filho, mas minha ex-sogra via que ele era um irresponsável e, com um neto no meio da história, ela me ajudou a pagar as taxas para conseguir meus papéis de imigrante.
Na época, eu fiquei sem documentos por falta de conhecimento. Eu não tinha dinheiro para bancar essas taxas. Não sabia que tinha isenção para quem estava abaixo da linha da pobreza, como era o meu caso.
Com documentos, green card e liberação para trabalhar, minha sogra me levou a Target, um supermercado dos Estados Unidos, para comprar roupa para que eu pudesse procurar um emprego. Acabei conseguindo uma vaga em uma seguradora com processamento de dados.
Eram uns quarenta funcionários temporários para uma vaga fixa. No final, a escolha da empresa ficou entre eu e outra menina. Ela ficou com a vaga. Fiquei arrasada. Aquele emprego me daria os benefícios e a segurança que eu precisava.
"Consegui um emprego melhor e voltei a estudar"
Em março de 2002 encontrei um anúncio no jornal de um escritório de advocacia que estava buscando uma pessoa para uma vaga de assistente legal. Eu não me qualificava em nada, mas mandei meu currículo e uma carta de apresentação, dizendo os idiomas que eu falava. Me chamaram para a entrevista e gostaram de mim. Por lá, trabalhei por 12 anos.
Fui recepcionista, assistente, secretária... Estava aprendendo, gostando e crescendo ali. Eles trabalhavam com imigração e eu amei. Se tivesse conseguido o emprego na seguradora, não teria essa oportunidade. O advogado do local é uma referência no meio até hoje.
Enquanto eu trabalhava por lá, eu voltei a estudar. Fiz bacharelado em comunicação, mestrado em relações internacionais e doutorado em direito.
Em 2013, quando eu saí de lá, fui dar aula em tempo integral no curso preparatório para a ordem dos advogados aqui dos EUA. E ainda advogava em tempo integral. Chegou um ponto em que a somatória ficou um pouco puxada.
Posso dizer que aprendi tudo o que eu sei de imigração nessa empresa, mas demorei mais tempo do que precisava para me formar porque eles não apoiavam meus estudos. Se eu tinha prova, não podia sair porque ainda tinha coisas do trabalho para entregar.
Meu chefe me perguntava por que eu queria ser advogada. Dizia que eu ganhava bem, que minha ambição era besta e que eu não precisava daquilo.
Mas a minha ambição não era financeira, eu queria saber quais seriam meus próximos passos. Já falei que meu pai vendia livros e ele sempre leu muito. Enquanto minha mãe era mais prática e corria atrás, meu pai dizia que eu tinha que estudar. Isso ficou comigo.
Em 2016 eu consegui abrir meu próprio escritório para advogar em tempo integral, mas continuava dando aulas no paralelo. Eu caí de paraquedas em um emprego que me deu algo que amo de paixão. É surreal pensar, por exemplo, que atendo pessoas que são famosas no Brasil. Eu nunca imaginei que teria acesso a elas. Eu seria no máximo a babá, a assistente da assistente em outra vida. Falo com eles com a maior segurança e confiança, mas confesso que depois vou respirar no saquinho.
Sou uma mulher negra e latina, mas quando cheguei, não sentia tanto preconceito. Tanto que fui contratada por um advogado loiro, de olhos azuis para trabalhar no escritório que me inspirou. Sinto mais o racismo hoje em dia. Acho que estamos regredindo. Algumas situações que nunca passei no começo da minha vida nos EUA, sinto na pele hoje.
Por exemplo, dou muitas palestras. Acabei de voltar de Nova York, porque estava falando com advogados especialistas em imigração. Há uns cinco ou seis anos, fui dar um curso de escrita legal na Escola de Direito da Califórnia. Na sala tinham 150 pessoas e na hora do intervalo uma senhora veio descendo a escada para falar comigo. Desliguei o microfone porque percebi que algo vinha aí. Ela chegou até mim com uma cara de ódio e disse que não estava entendendo nada do que eu falava, que meu sotaque era horrível. Fiquei calma e disse que poderia falar com a organizadora do curso para que fosse reembolsada.
Uma das minhas maiores inseguranças é o meu sotaque. Eu já começo as palestras falando dele. Aquilo mexeu muito comigo, tremi na base. Mas eu não podia me desestabilizar porque o curso ia continuar para o resto do público. Tive que mentalizar que era só o reflexo de uma experiência pessoal, não coletiva. Nunca tinha vivido algo assim.
Ultimamente as pessoas estão muito abertas para o que elas acham. O politicamente correto é bom, às vezes. O meu escritório fica em um condado republicano superconservador. E sou uma mulher negra e estrangeira empregando várias pessoas. Eu nem penso nisso, que inspirar outros para que tenham a mesma experiência que eu tive", Flávia Lloyd, 43 anos, advogada, mora na Califórnia, nos Estados Unidos
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