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'Planto respeito': professores LGBTs combatem preconceito em sala de aula

A professora Jhosy Gadelha, que dá aulas para o Ensino Médio na cidade de Pacajus (CE) - Marília Camelo/UOL
A professora Jhosy Gadelha, que dá aulas para o Ensino Médio na cidade de Pacajus (CE) Imagem: Marília Camelo/UOL

Mariana Gonzalez

De Universa, em São Paulo

28/06/2022 04h00

É a partir da própria existência como mulher trans que a professora de espanhol Jhosy Gadelha, 34, de Pacajus (CE), dá lições sobre empatia, respeito e diversidade aos seus alunos. "Na minha primeira aula com cada turma, tenho uma conversa e me coloco à disposição para tirar dúvidas. Eles ouvem, ficam admirados. Se alguns deles têm um pensamento mais fechado quanto à diversidade, tudo muda. É 'tia Jhosy' para cá, 'tia Jhosy' para lá", conta ela.

Ela, que chegou a ouvir de amigos coisas do tipo "onde já se viu professor vestido de mulher?" quando iniciou a transição, há cerca de dez anos, hoje é acolhida e respeitada pelos adolescentes e por colegas de escola.

Também professora, Camila Guimarães, 26, diz que já abriu uma roda de conversa com os alunos quando ouviu um menino chamar outro de "viadinho". A ideia era mostrar que "ser gay não é uma coisa ruim". "Outros professores deixam passar, eu não", diz Camila, que também já teve de enfrentar episódios de homofobia, assim como o educador Saulo Amorim, 40.

Em comum, os três enfrentam o preconceito diariamente e tentam, com isso, tornar os ambiente em que vivem lugares mais justos e acolhedores para si e para os outros. Nesta terça-feira, 28 de julho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, Universa conta a história desses três professores. Leia abaixo:

"Na sala de aula, planto respeito e bons sentimentos"

Jhosy Gadelha - Marília Camelo/UOL - Marília Camelo/UOL
Imagem: Marília Camelo/UOL

A professora Jhosy Gadelha leciona espanhol para turmas do Ensino Médio da Escola Estadual Padre Coriolano, em Pacajus (CE), em três turnos: manhã, tarde e noite. Ela atua há mais de dez anos na área e, durante esse tempo, diz que nunca sofreu preconceito ao exercer a profissão.

No início de junho, no entanto, Jhosy foi vítima de transfobia em uma loja de roupas evangélicas, onde foi para comprar uma saia de comprimento mais longo, para trabalhar. Lá, foi tratada por pronomes masculinos, mesmo depois de se apresentar como Jhosy e pedir para ser tratada no feminino.

"A proprietária da loja usou a religião dela para justificar um preconceito que, na verdade, não tem justificativa", lembra. "Enquanto eu pedia para ela me chamar de Jhosy, ela dizia que não porque eu não sou mulher. Foi horrível, nunca tinha passado por nada parecido".

Jhosy prestou queixa e passou dois dias em casa se recuperando das agressões, com todo o apoio da direção da Escola Estadual Padre Coriolano, onde leciona há sete anos. Quando retornou à rotina de aulas, a surpresa: os alunos a receberam com palmas, cartas e mensagens de apoio.

"Estava em sala de aula quando bateram na porta. Eu me deparei com aquela corrente de alunos batendo palma, gritando meu nome. Não sei como tive forças de andar pelo corredor, a emoção foi muito grande"

"Senti que estava recebendo os frutos do que eu planto todos os dias em sala de aula —respeito, bons sentimentos. Pensei: 'Jhosy, você está no caminho certo'" Jhosy Gadelha, professora.

Jhosy Gadelha - Marília Camelo/UOL - Marília Camelo/UOL
Imagem: Marília Camelo/UOL
Jhosy Gadelha - Marília Camelo/UOL - Marília Camelo/UOL
Imagem: Marília Camelo/UOL

Como professora e mulher trans, é esse o valor que Jhosy passa aos alunos a partir da própria existência e pela maneira como trata e se envolve com os adolescentes.

"Na minha primeira aula com cada turma, tenho uma conversa sobre respeito, me colocando à disposição deles para falar mais sobre isso, tirar dúvidas. Eles ouvem, ficam admirados. Se alguns deles têm um pensamento mais fechado quanto à diversidade, tudo muda. É 'tia Jhosy' para cá, 'tia Jhosy' para lá.

Jhosy conta que, quando começou a transição, pouco depois de se formar e quando já lecionava para o Ensino Médio, ouviu de colegas comentários do tipo: 'Você vai perder o emprego. Onde já se viu um professor vestido de mulher?'

Mas foi muito bem recebida.

"Primeiro mudei minhas roupas e minha aparência somente fora da escola. Até que o diretor da escola me chamou e perguntou se eu estava me sentindo bem assim [sendo uma mulher fora da escola, mas dando aula vestindo roupa masculina]. Respondi que não, e ele me encorajou: 'Não tem por que ser duas pessoas. A partir de amanhã, vem trabalhar como se sentir à vontade, como todas as outras professoras'. Foi incrível."

"Quando colega chama outro de 'viado', é hora de abrir roda de conversa"

Camila Guimarães - Alex Almeida/UOL - Alex Almeida/UOL
Imagem: Alex Almeida/UOL

"Tinha uma aluna do sexto ano que disse para os colegas que gostava de meninas. Um dia, minha coordenadora viu ela passando, usando uma blusa de frio e um top por baixo, e comentou: 'Ué, quer virar homem e sai por aí sem roupa?', dizendo que mulher que namora com mulher quer virar homem. Ela falou da menina, mas deu para sentir que queria me cutucar. Respirei fundo e saí dali, foi bem desagradável", conta a professora Camila Guimarães, que dá aulas para crianças de 8 a 10 anos em uma escola pública da Praia Grande (SP).

Ela é casada com uma mulher, mas se abre pouco com os colegas que trabalham no mesmo lugar. "Sempre fui bem reservada, mas não tenho nenhum problema em falar sobre se alguém me perguntar". Por isso, acredita, esse foi o único episódio explícito de homofobia que passou em sua trajetória na educação básica.

Embora não fale sobre a vida pessoal, Camila aborda questões de gênero e diversidade em sala de aula: "Temas LGBTQIA+ aparecem no ensino e eu não deixo de falar sobre.

Sempre que acontece de um menino chamar outro de 'viado', por exemplo, é o momento de abrir uma roda de conversa e falar sobre isso, mostrar que ser gay não é uma coisa ruim" Camila Guimarães, professora

Em outra ocasião, precisou intervir em um caso de racismo em uma turma que acompanhou por alguns dias, como professora substituta: um garoto negro foi até ela, que também é negra, e disse que outro aluno, branco, tinha se referido a ele de forma pejorativa.

"Ele chegou segurando o choro. E o menino branco, quando perguntei, disse que tinha sido 'só brincadeira'. Chamei os pais para conversar. Pode parecer bobagem, mas não é."

Camila lamenta que os temas não estejam no currículo ou nas diretrizes de ensino e acredita que, ao tratar de assuntos como racismo e homofobia entre os adolescentes, é um ponto isolado entre os colegas: "Outros professores deixam passar. Eu não".

1º servidor de escola em união homoafetiva: preconceito vem de chefes

Saulo Amorim - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Imagem: Bruna Prado/UOL

Diferentemente de Jhosy, Saulo Amorim, orientador educacional de crianças da Educação Infantil (entre 3 e 5 anos) na escola Pedro 2º, no Rio de Janeiro, deu de cara com a LGBTfobia algumas vezes durante sua trajetória na educação básica.

Nos últimos cinco anos em que ocupa o cargo, os episódios mais marcantes de violência vieram de chefes e colegas de trabalho. "São pessoas com um discurso pretensiosamente avançado, mas com posturas completamente discrepantes das falas. O famoso 'eu respeito, eu acolho', mas que, na prática, não se dá conta do preconceito internalizado e da conduta homofóbica", afirma.

Também os pais das crianças mostram estranhamento, diz ele, mas de maneira velada. "Em geral, a posição que eu ocupo me protege do preconceito aberto, mas os sinais velados de estranhamento são constantes, seja numa fala desconcertada, num olhar de espanto, na dificuldade de encontrar pronomes de tratamento corretos e até de estabelecer contato visual", diz.

Saulo Amorim - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Imagem: Bruna Prado/UOL
Saulo Amorim - Bruna Prado/UOL - Bruna Prado/UOL
Imagem: Bruna Prado/UOL

"Convivi durante alguns meses com um chefe que tinha o hábito de fazer piadas com conotação homofóbica, geralmente com outros colegas heterossexuais, desmerecendo, chamando de fraquinho, mariquinha, viadinho. Fazia isso na minha frente e, no começo, com algum constrangimento, olhava para mim e pedia desculpas —mas continuava fazendo", lembra.

"Depois, perdeu o constrangimento e começou a fazer esses comentários inclusive para mim. Tive que alertar ele de aquilo era homofobia. A coisa ficou tão desconfortável que acabei pedindo para mudar de setor."

"Recentemente, quando comecei a me identificar com expressão não-binária e a usar roupas que não são completamente masculinas —além de cabelo comprido, unhas pintadas— vivi situações constrangedoras: ao mesmo tempo em que alguns colegas me elogiavam, outros demonstravam incômodo" Saulo Amorim, orientador educacional

Saulo foi o primeiro servidor da escola a registrar uma união homoafetiva, que mais tarde virou casamento, e também o primeiro a adotar e exigir a licença paternidade por meio de um processo administrativo. Nesse período, novamente, enfrentou problemas.

"Quando a direção soube que quando meu filho chegasse eu me afastaria por um período longo —em caso de adoção para casais gays, a licença paternidade pode ser equiparada à licença maternidade, de até 180 dias— surgiram comentários do tipo: 'Mas você é homem, a licença é para a amamentação''".