Rejeitada pelo pai, Janaína, mulher trans, o perdoou: 'Só queria seu amor'
Quando ouvi a história de Janaína para o livro "Cartas do Casarão, 9 Histórias de Pessoas Trans", que escrevi em parceria com o Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder, fiquei um pouco em choque. "Para quem você gostaria de escrever uma carta?", havia perguntado a ela. E Janaína quis dedicar sua história ao pai, já morto. O mesmo pai que a rejeitou na infância e na adolescência e que, ao expulsá-la de casa, empurrou-a para para as ruas.
Que capacidade é essa de perdoar alguém que a machucou tanto? Por isso, em homenagem a essa vendedora de bala com o coração do tamanho do mundo, encerro a série de textos de histórias de adultos trans, nesse mês do Orgulho LGBTQIA+, com a carta da Janaína.
Carta para o meu pai, João Brito Barreiras,
Pai, há três anos, você estava morrendo. Câncer, tuberculose, diabetes, tudo junto. Ninguém quis cuidar de você, com medo do contágio. Nem minha mãe pôde fazer isso, ela já estava velha e fraca. Mas quando ela me ligou pedindo ajuda, eu fui. Deixei São Paulo, onde moro, e fui para Belém do Pará, para a sua casa, de onde saí me sentindo tão rejeitada por você.
Quando você me viu, de cabelão comprido, não me reconheceu. Tomo hormônio desde os 11 anos, tenho 8,5 litros de silicone industrial no corpo, aplicados sem anestesia. Eu estava bem diferente.
Minha mãe disse: "é sua filha Janaína". E pediu que não me chamasse pelo nome de batismo porque eu era a única dos oito filhos que você tinha que iria cuidar de você. A única filha que aceitou fazer isso, pai.
Eu te dei banho, te dei comida, tratei de você como se trata de um bebê. Até sua morte, você só chorava e me pedia perdão.
Eu te perdoei, te disse que esperei a minha vida inteira para poder te abraçar. Te disse que te amava, apesar de você não ter me aceitado, de nunca ter me dado o amor de pai que eu esperava.
Contei tudo para você. Que, quando eu era criança, não entendia por que você não me olhava como olhava para os meus outros irmãos.
Por que eu ganhava lembrancinhas de Natal e meus irmãos ganhavam brinquedos, presentes de verdade? Por que você me castigava tanto, tudo era motivo para eu ajoelhar no milho?
Por que ficou pior quando você soube que meu sonho era ser aquele homem que se vestia de mulher no programa do Silvio Santos? Eu tinha apenas 11 anos e você disse: "Meu Deus, mais um sangue ruim meu jogado no esgoto".
Nunca entendi. Será que foi porque você era militar? Ou por que a tribo indígena da qual você descende não aceita homossexuais? Será que era medo que eu sofresse violência por ser diferente? Era medo, pai?
Contei dos meus perrengues. Aos 15 anos, eu estava na estrada, pegando carona, fugindo de você e da minha cidade. Falei da minha vida em São Paulo, como fiquei morando na casa de uma cafetina por quase trinta anos, fazendo programas, doze por dia, para pagar a comida e o quarto.
Nunca gostei de fazer programas, te disse isso também. Mas não havia jeito de me livrar daquilo, parecia uma escravidão. Toda vez que eu pensava em sair da casa dela, tinha alguma conta nova para pagar. Apanhava dos amigos dela quando fugia.
Caí na bebida, oito corotes por dia, e nas drogas, muita cocaína. Te mostrei meus machucados, as marcas na cabeça feitas pela polícia.
Você chorou muito e me abraçou. Pai, isso era tudo que eu queria: seu amor.
Enquanto conto essa história, que vai virar uma carta para você, eu também estou chorando. De alegria, porque tive a oportunidade de cuidar de você e dizer tudo que eu queria. Pena que foi no leito de morte, queria tanto que fosse em outra situação.
Agora, estou bem. Faz sete meses que consegui me livrar da cafetina. Dessa vez, ameacei chamar a polícia se ela me segurasse e deu certo.
Estou curada da síndrome do pânico e da depressão, tenho um quarto que um casal de idosos me emprestou. Em troca, eu cuido deles, faço compras de supermercado, ajudo na limpeza da casa. Voltei a estudar, pai, e agora consigo ver as letras formando palavras na minha frente. Estou aprendendo contas de matemática também.
Não faço programas mais. Se preciso de dinheiro, vendo bala no farol e faço bicos de limpeza. Também ganho comida na escola e cesta básica aqui no Centro [Centro de Cidadania LGBTI Claudia Wonder].
Estou cursando uma oficina de empreendedorismo, quero abrir uma barraquinha com lanches, doces, churrasquinho. Cozinho bem, aprendi com minha mãe.
Quando fico com fissura de drogas, começo a me lembrar das coisas ruins que não quero passar de novo e das coisas boas que estão acontecendo. Converso com Deus, ocupo minha mente.
De uma coisa, eu tenho certeza: não quero voltar para as ruas, pretendo terminar meus estudos, comprar meu barraco. Eu, Jair, nome social Janaína, vou lutar para conseguir o que quero."
Janaína Brito Barreiras, mulher trans, ex-profissional do sexo, 45 anos, paraense
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