Puta marca: como a Daspu popularizou o movimento organizado das prostitutas
Prostitutas de várias gerações, de diferentes regiões do Brasil e com diversos graus de militância, desfilaram na noite da última terça-feira (28), dia do orgulho LGBTQIA+, em meio a um efeito neon criado com jatos de luz negra — e sob aplausos de um público sentado em cadeiras de plástico, onde se viam pessoas usando camisetas com frases como "Lute como uma Puta", "Toda Mulher é da Vida" ou "Somos Todas Putas".
O desfile orgástico, na definição dos organizadores, foi o mais recente da história da Daspu, a grife criada há 17 anos para ajudar a levantar fundos para programas destinados à melhoria das condições de trabalho das prostitutas, mas que à sua maneira irreverente, meio anárquica e totalmente inclusiva, acabou virando a mais retumbante voz da categoria no país.
O desfile foi dividido em duas partes. Na primeira, modelos conhecidas por seu ativismo exibiram peças do acervo da Daspu, caminhando em meio a uma cenografia com fotos e projeções que contavam a trajetória da marca. No segundo ato, veio a nova coleção, formada por acessórios vestíveis, com adereços de trabalho como cintas-ligas com correntes e imensos colares.
As prostitutas exibiram peças de malha que, com apenas três buracos, podem se transformar em vários tipos de roupas. E desfilaram capas pintadas à mão que, uma vez abertas, se transformaram em asas. "O tema do desfile é a liberdade, a transparência. É o direito de ser quem a gente é", disse a figurinista Mari Paes, colaboradora da Daspu, cenógrafa da performance e autora da coleção.
Festivo, militante e hiper aplaudido, o desfile foi uma das atrações do Festival Be Yourself/Seja Você Mesmo, organizado pela Casa Nem, um centro de acolhimento de pessoas LGBTIA+ em situação de vulnerabilidade social. O evento reuniu prostitutas, trans e indígenas no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e comemorou uma trinca de efemérides: os 35 anos do movimento nacional de prostitutas, os 30 anos do movimento de transvestigêneres e os 30 anos do Coletivo Puta Davida.
Mas foi também uma demonstração da vitalidade da Daspu, a marca que nasceu para ser uma grife, foi se transformando em movimento cultural e, aos trancos e barrancos, sobreviveu até à antagonista que resolveu satirizar, a megaloja de luxo Daslu.
Dasputaria
Na madrugada de 13 de julho de 2005, agentes da Polícia Federal e fiscais da Receita Federal chegaram ao prédio da Daslu, à beira da Marginal Pinheiros, em São Paulo, para cumprir mandados de busca e apreensão da Operação Narciso, que investigava um imenso esquema de sonegação fiscal. Foi uma varredura arrasa-quarteirão. Helicópteros barulhentos sobrevoaram o prédio e alguns policiais chegaram a descer de rapel pela fachada - mas todos acabaram entrando na loja por um pequeno portão lateral, aberto por um segurança sonolento e boquiaberto.
As notícias sobre a batida policial no império do luxo invadiram as conversas pelo país afora. Dois dias depois, na casa no bairro da Gloria, no Rio de Janeiro, onde funcionava a ONG Davida (hoje rebatizada de Coletivo Putas da Vida), prostitutas e colaboradores comentavam a grandiosidade da operação.
Fundadora da ONG e responsável pela organização nacional da categoria, a ativista Gabriela Leite comentou que também gostaria de abrir uma grife, como forma de financiar projetos para prostitutas que ninguém queria patrocinar, por preconceito. O nome da marca — Daspu — saiu ali mesmo, entre risadas e na muvuca da conversa.
De tão irreverente e em cima do lance, a ideia vazou e foi publicada nos jornais, antes que turma tivesse um desenho sequer de roupa. Com a imprensa telefonando para saber mais, Gabriela e seu companheiro na época, o jornalista Flavio Lenz, correram para aproveitar a onda. Confirmaram que estavam criando a marca e decidiram começar imprimindo camisetas com mensagens debochadas e militantes.
A Daslu não gostou. Por meio de seus advogados, enviou uma notificação extrajudicial para a ONG Davida, ameaçando processá-la se a brincadeira com o nome continuasse. De novo, a Daspu virou notícia - em vários países do mundo e agora contando com a simpatia geral.
A Daslu, a essa altura com problemas bem mais graves para resolver, acabou desistindo do processo. E, no dia 16 de dezembro de 2005, a Daspu fez seu primeiro desfile na Praça Tiradentes, tradicional área de batalha das prostitutas no centro histórico do Rio de Janeiro.
"De lá para cá, a Daspu acabou sendo muito mais do que a gente poderia imaginar. Teve seus altos e baixos no caminho, mas está aí pujante, simbolizando uma resistência", afirma Flavio Lenz. Além de idealizar a marca ao lado de Gabriela, ele foi responsável por sua comunicação ao longo dos anos e escreveu o livro "Daspu - A Moda Sem Vergonha", que conta os frenéticos bastidores da criação da grife.
Somos todas putas
Como movimento cultural, a Daspu fez desfiles em ruas, praças, espaços culturais, universidades, casas noturnas, congressos, colégios. Participou de exibições em eventos na Bienal de Arte de São Paulo, no Sesc Pompéia, no MASP. Teve representantes no elenco da ópera María de Buenos Aires, de Astor Piazzolla, na montagem que abriu a programação dos 110 anos do Theatro Municipal de São Paulo, no ano passado. Virou tema de documentários, teses acadêmicas, livros.
Em seus eventos, prostitutas desfilaram de modo risonho e meio lascivo, mostrando peças como um vestido de noiva feito com lençóis de motel, bolsas com a frase "As Mulheres Perdidas são as Mais Procuradas" ou camisas com a sentença "A Profissão é a Prostituição mais Antiga do Mundo". Acabou associada a um ativismo alegre, orgulhoso e inclusivo.
Movimento organizado
A Daspu virou, enfim, a ponta irreverente e popular de uma história de militância que começou em 1987, quando Gabriela Leite e Lourdes Barreto resolveram criar o primeiro encontro nacional de prostitutas, chamado Mulher da Vida, Preciso Falar.
Gabriela era uma ex-estudante de sociologia na Universidade São Paulo (USP) que, aos 22 anos, resolveu largar os estudos e se prostituir - e trabalhava na Vila Mimosa, reduto da prostituição no Rio de Janeiro. Lourdes, uma profissional do sexo paraibana, que costumava batalhar em garimpos e no sistema carcerário na região norte do país.
As duas se conheceram em reuniões da Pastoral da Mulher Marginalizada, uma das pastorais sociais da Igreja Católica. E ambas tinham um discurso contrário à vitimização das prostitutas. Gostavam de reafirmar que escolheram a profissão por conta própria e não foram jogadas nela — como as pessoas preferiam enxergar.
O encontro nacional teve pauta centrada no combate à violência policial e no reconhecimento da prostituição como trabalho. Foi um "puta acontecimento", como publicaram, com razão, alguns jornais na época.
O encerramento do encontro, no Circo Voador, no Rio de Janeiro, teve a participação de artistas como Elza Soares, Martinho da Villa, Lucélia Santos e Norma Bengell. O escritor Jorge Amado, cuja obra inspirou o nome de guerra de Gabriela - cujo nome de batismo era Otília - enviou uma carta saudando a iniciativa.
O evento disseminou a criação de organizações para defender a categoria pelo Brasil afora. Ainda em 1987, Gabriela e Lourdes criaram a Rede Brasileira de Prostitutas, a mais antiga em atividade. Depois vieram outras, como a Central Única de Trabalhadoras Sexuais (CUTS) e a Articulação Norte-Nordeste de Profissionais do Sexo. No Rio de Janeiro, Gabriela criou a ONG Davida. Em Belém, Lourdes fundou o Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (Gempac).
Foi uma movimentação que resultou em efeitos concretos. Em 2002, as prostitutas organizadas participaram de grupos de trabalho a convite do Ministério da Saúde e do Ministério do Trabalho — e a prostituição entrou para o rol da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), como atividade restrita aos maiores de 18 anos. Profissionais do sexo passaram a poder se registrar no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) como autônomos e a ter garantia de aposentadoria - um direito ainda hoje pouco exercido por causa do estigma que ronda a profissão.
Gabriela Leite morreu em 2013, aos 62 anos, de câncer. Lourdes Barreto tem 80 anos, participa de seminários e palestras pelo Brasil afora e leva a frase "Eu Sou Puta" tatuada no antebraço esquerdo - reproduzida em silk screen, uma foto dela mostrando a tattoo estampa camisetas da Daspu. "Sou uma puta feminista!", define, sentada em uma cadeira na plateia do desfile desta semana no Circo Voador, onde foi tratada pelo público com termos como "matriarca" e "deusa".
Muito mais que roupa
Como grife estruturada, a Daspu teve vida breve. Chegou a ter pontos de vendas de camisetas em lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro e a lançar um site, o "putique". O modelo de negócios, no entanto, não decolou. Mas eventualmente lança novos modelos de camisetas em colaboração com artistas.
Na semana passada, a marca ficou entre os 21 projetos selecionados no Edital Empodera - Moda Transformando Vidas, do Fundo ELAS de investimento social. Agora contando com uma verba de R$ 40 mil, o Coletivo Putas da Vida pretende lançar novas camisetas e uma nova coleção, para enfim impulsionar a marca.
Mas, no fim das contas, a grife acabou cumprindo um papel maior. "Foi a Daspu que fez com que o movimento das prostitutas ganhasse visibilidade com o grande público", diz a psicóloga Elaine Bortolanza, que coordenou a marca durante 10 anos e saiu há dois meses.
Hoje, com a chegada de novas gerações, o ativismo vai mudando de casca. O Davida, agora coletivo Putas da Vida, é tocado por jovens militantes com novas demandas. E vieram outros, independentes, como o Rebu. E, dentro do próprio movimento feminista, há uma corrente, a abolicionista, que defende a abolição dos serviços sexuais porque entende que eles mercantilizam o corpo feminino e estão a serviço da opressão patriarcal.
O cenário muda, mas a Daspu - irreverente e transparente — continua. "Não tem a ver só com roupa, tem a ver com a sexualidade, com o modo como a gente se expressa. Porque o estigma da puta cabe a todos nós. Qualquer mulher que foge à regra, ou dependendo do que veste, é puta. Fazendo desfiles nas ruas, ocupando teatros, a Daspu faz política e luta por uma sociedade em que a mulher possa viver livremente a sua sexualidade", analisa Elaine Bortolanza. E completa: "A Gabriela costumava dizer: quando sinalizar disputaria, responda com alegria".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.