Topo

Se ela nunca disse não, é estupro? Como séries têm retratado crimes sexuais

Cena de "Dois Verões", da Netflix: mostrar que quer fazer sexo é o mesmo que consentir o ato sexual? - Reprodução/Netflix
Cena de "Dois Verões", da Netflix: mostrar que quer fazer sexo é o mesmo que consentir o ato sexual? Imagem: Reprodução/Netflix

Camila Brandalise

De Universa, em São Paulo

03/07/2022 04h00

Este texto contém muitos spoilers sobre duas séries da Netflix, mas é por uma boa causa. A ideia aqui é discutir como seriados recentes têm se preocupado em contar histórias de estupro de maneira crítica, fazendo o espectador, e chuto dizer que até o mais cabeça fechada, se questionar sobre suas próprias relativizações quando o assunto é abuso sexual —aquela história de "ela queria" ou de "por que ela não reclamou/gritou/disse não na hora?".

A britânica "Anatomia de um Escândalo", lançada em abril, e a belga "Dois Verões", no ar desde o início de junho, têm em comum a discussão sobre consentimento: as vítimas dizem que foram violadas, mas os agressores afirmam que não havia qualquer indício de que elas não estariam gostando. E, por isso, não pararam. Os comparsas dos homens —que na primeira é a Justiça e, na segunda, os amigos do estuprador— seguem a mesma linha de pensamento.

Em "Anatomia", o estupro é cometido por um amante; em "Dois Verões", por um amigo. Aí já começa um retrato bastante verossímil do crime: assim como no Brasil, onde em 8 a cada 10 casos o estuprador é conhecido da vítima, a tendência em todo o mundo é que abusos sexuais sejam cometidos, na maioria das vezes, por pessoas próximas à mulher.

Mais do que retratar o sofrimento das vítimas, as séries em questão escancaram a hipocrisia e a falta de vontade da sociedade em entender os mecanismos que permitem que um crime sexual seja cometido. É a isso que vou me ater a partir de agora.


Não foi estupro porque ela não disse não

Rupert Friend e Sienna Miller em cena da série "Anatomia de um Escândalo" - Ana Cristina Blumenkron/Netflix - Ana Cristina Blumenkron/Netflix
Rupert Friend e Sienna Miller em cena da série "Anatomia de um Escândalo"
Imagem: Ana Cristina Blumenkron/Netflix

"Anatomia de um Escândalo" chegou figurar no ranking das séries mais vistas da Netflix por um bom tempo na época do lançamento. Há vários trunfos que fazem jus ao sucesso: a narrativa bem contada, o suspense, os novos elementos da história que vão aparecendo ao longo dos episódios e, na visão feminista, a discussão sobre consentimento.

James Whitehouse (Rupert Friend, de Homeland) é um político em ascensão, casado e com filhos, que tem um caso com Olivia (Naomi Scott), funcionária de seu gabinete e abaixo dele na hierarquia de trabalho. Um dia, após romperem a relação, James tem um rompante de ódio após uma reportagem sobre ele. Olivia tenta consolá-lo, se aproxima do chefe, sexualmente falando, dentro do elevador, mas em dado momento pede que a investida dele, cada vez mais agressiva, não continue naquele local. Ele não para, e ela, em estado de choque, não consegue reagir.

Depois disso, Olivia o processa e o caso é levado à Justiça britânica. A alegação da defesa de James é que a vítima não disse não, com todas as letras, em nenhum momento. Argumenta que os dois já tiveram relações sexuais anteriormente e qu, o fato de ela dizer "aqui não" é inválido como prova de que não foi consentido.

A promotora do caso, ela mesma uma vítima de estupro, tenta provar que as relações sexuais anteriores não é prova de que não houve estupro. E também diz que, como Olivia relutou e não disse sim, claramente, além de haver uma situação de desigualdade hierárquica, houve crime.

Impossível não se indignar com a história. A cena do elevador mostra o choque de Olivia, o medo de perder o emprego, a agressividade de James. Fica claro, aqui, que mesmo não tendo dito "não quero", com todas as letras, trata-se de um caso de estupro. E não importa se havia um relacionamento anterior. Se, naquele exatamente momento, a mulher mostrou hesitação em seguir, e o homem continuou, há crime —aliás, já ouviu falar em estupro marital?


Não foi estupro porque ela queria

Em "Dois Verões", as viradas na história também vão aparecendo aos poucos aos espectadores. Primeiro, a série mostra que um grupo de amigos estão se reencontrando para passar um final de semana juntos, assim como haviam feito 30 anos antes.

No encontro anterior, porém, uma das mulheres foi estuprada quando estava bêbada. Ela sequer lembrava do que havia acontecido, apesar de desconfiar, como confessa na trama. Mas um vídeo do abuso, filmado quando o grupo tinha por volta de 20 anos, reaparece e chega até o celular da vítima, que agora quer vingança.

Nesse caso, o agressor morreu e não está mais entre os amigos. Mas a história do estupro é o elefanto branco na chique sala de estar da casa de verão do casal anfitrião. Até que, durante um almoço, o assunto surge. As mulheres, revoltadas, tentam mostrar para os homens por que aquilo foi estupro —eles todos participaram da cena de violação, assistindo ou filmando.

É interessante ver como, 30 anos depois, eles até entendem que o estupro não poderia ter acontecido, mas mais por medo da opinião pública se o caso viesse à tona na imprensa (todos eles são influentes e estariam em meio a um escândalo se o vídeo vazasse). Na discussão em que relembram o verão anterior, porém, tentam justificar o que aconteceu: também estavam bêbados, a vítima estava dançando de maneira sensual, tinha dito que queria sexo, não tinha como perceber que ela não queria, ela retribuiu o beijo do estuprador.

A questão é que ela estava completamente bêbada, teve que ser carregada até o quarto, não conseguia se mexer nem abrir os olhos e o beijo retribuído em nenhum momento chega nem perto de ser um sinal de consentimento para uma relação sexual. E isso a série deixa bem evidente.

A história tem outras camadas que tocam no tema da vingança e do estrago que uma situação como essa pode trazer para todo um grupo que prefere fingir que nada de errado aconteceu.

Em ambos as séries, a licença narrativa leva a um desfecho inesperado, que apesar de não parecer muito condizente com a realidade, dão a mensagem que querem dar. São diferentes, mas em nenhum dos casos a violência sexual é tratada como assunto adjacente às histórias daquelas pessoas.

Como denunciar

Mulheres que passaram ou estejam passando por situação de violência, seja física, psicológica ou sexual, podem ligar para o número 180, a Central de Atendimento à Mulher. Funciona em todo o país e no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O serviço recebe denúncias e faz encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. O contato também pode ser feito pelo WhatsApp no número (61) 99656-5008.

Mulheres vítimas de estupro podem buscar os hospitais de referência em atendimento para violência sexual, para tomar medicação de prevenção de ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), ter atendimento psicológico e fazer interrupção da gestação legalmente.

Se houver intuito de denunciar, a orientação é buscar uma delegacia especializada em atendimento a mulheres. Caso não haja essa possibilidade, os registros podem ser feitos em delegacias comuns.