Mães denunciam maus-tratos contra crianças autistas em clínica: 'Desumano'
Mãe de uma criança com autismo, uma moradora de Duartina, cidade localizada a aproximadamente 385 quilômetros da cidade de São Paulo, começou a perceber que o filho, hoje com 5 anos, não estava respondendo ao tratamento numa clínica especializada. A mãe, em um primeiro momento, resolveu denunciar à polícia um possível crime de estelionato: ela estava gastando cerca de R$ 9 mil mensais sem receber pelo que investia. Acabou descobrindo que o menino levou um tapa na boca e foi xingado por uma profissional.
Ela e outras mães começaram a perceber inconsistências no atendimento das crianças "Meu filho fazia 40 horas por semana de terapia Aba (Análise do Comportamento Aplicada, especial para crianças autistas), mas não conseguia sentar para almoçar. Descobrimos que as crianças ficavam ali como se fosse uma creche, sem atendimento, numa sala em comum, sendo que Aba é uma terapia individualizada", descreve a mãe, em entrevista a Universa.
A Polícia Civil de Duartina (SP) está investigando o caso e, de acordo com o delegado responsável, Paulo Calil, pode ter havido também casos de agressão e tortura. Conforme orientação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), a reportagem não irá identificar a mãe para não expor a vítima, menor de idade.
Em entrevista a Universa, a mãe fala que seu filho caçula tinha apenas 1 ano quando foi diagnosticado com autismo severo. Desde então, ele frequentava a clínica. Mas a partir do ano passado ela não estava mais percebendo evolução na criança e questionou a dona da clínica quanto ao atendimento. Diante da negativa de que algo errado estava acontecendo, ela procurou a delegacia da cidade para fazer uma denúncia pela falta de atendimento.
Após o boletim de ocorrência registrado pela mãe, o delegado começou a ouvir ex-funcionários da clínica. Foi quando uma acompanhante terapêutica entregou um celular com conversas, fotos e vídeos de um ano para cá.
Entre os relatos, mensagens para uma funcionária não trocar a fralda, deixar a criança com "xixi mesmo". Entre os vídeos, um com imagens de uma criança trancada em uma das salas no consultório da fonoaudióloga e mais. "Havia ali um áudio contando que uma fonoaudióloga deu um tapa na boca do meu filho e o chamou de nomes feios porque ele a mordeu. Isso é desumano, porque essa pessoa conhece toda a história dele", diz a mãe e primeira denunciante. O conteúdo, segundo o delegado contou a Universa, pode caracterizar maus-tratos.
"O tapa doeu mais que qualquer coisa. Não só pela agressão, mas é doloroso pensar que meu filho perdeu quatro anos de terapia."
Polícia investiga mais 5 casos
A Universa, o delegado Paulo Calil disse que já ouviu cinco mães e que instaurou inquérito policial para apurar o crime de tortura ou de maus-tratos. Ele acrescenta que será feito uma perícia e análise de áudio e das fotografias e vídeos que estavam no celular da acompanhante para que haja certeza de que não houve montagem.
Caso o exame comprove que houve crime, uma psicóloga da prefeitura atenderá as crianças para entender o grau de sofrimento de cada uma. "Após essa análise dará para saber se foi maus-tratos ou tortura", afirma Paulo.
Como perceber violência contra criança autista
Especialista em saúde mental pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), a psicóloga Marli Lunezo explica que geralmente responsáveis não acompanham mesmo sessões de crianças porque isso pode interferir na concentração da paciente.
Já a servidora pública Cintia Regina, 49, mãe atípica e diretora do coletivo Azuis da Leste, voltada para pessoas com autismo, não é adepta a essa ideia. "Acho que é uma segurança até para o próprio profissional quando os pais estão acompanhando", fala ela, mãe de uma pessoa com autismo, de 21 anos.
As duas, no entanto, têm o mesmo entendimento quanto à importância de perceber a linguagem corporal das crianças que estão sofrendo alguma violência, como sentir repulsa ou ignorar determinadas pessoas. "Alguma coisa mais grave aconteceu", atenta Cintia.
"O mau humor, irritação, dificuldade para dormir, falta de apetite e mudança de comportamento na frente do algoz são sinais claros de que alguma coisa está acontecendo", lista Marli.
A presidente da Comissão de Defesa dos Direitos dos Autistas da OAB/SP (Santo Amaro), Camilla Cavalcanti, acrescenta que, mesmo quando a criança tem deficiência e fala prejudicada, além desses sintomas descritos, a criança também pode ficar mais agressiva e até se urinar.
Ela também incentiva a instalação de câmeras em salas de atendimento e até mesmo em escolas para se ter mais transparência quanto ao cuidado das crianças.
É o que faz a nova clínica onde a criança vítima de Duartina é atendida. A mãe afirma que o filho parece bem, mas perdeu algumas habilidades, como parte da locomoção e sensibilidade dos pés, teve um estiramento de tendão e encurtamento nos braços durante esse período.
"Existe o dilema entre o princípio da privacidade e a segurança e dignidade no tratamento da criança, mas acho que é uma alternativa boa", aponta Camilla, que também tem um filho com autismo.
A advogada ainda explica mais uma vantagem de se obter imagens desses estabelecimentos: a falta de especialistas em atendimento a pessoas com deficiência nas delegacias. Nesse caso, ela aponta, a filmagem é um documento fundamental a ser usado como prova para que a criança não passe por todo um sofrimento de ter que depor, e de forma errada.
A mãe denunciante agora espera o resultado da investigação. "Eu procurei o caminho certo da denúncia, e a única coisa que eu desejo na minha vida é que essa profissional não ponha mais a mão em nenhuma criança."
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