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De confeiteira a mecânica: na oficina, ela rompe tabu com paixão por carros

Rebecca Menezes Martins, 22 anos, dribla o machismo no universo das oficinas - Arquivo pessoal
Rebecca Menezes Martins, 22 anos, dribla o machismo no universo das oficinas Imagem: Arquivo pessoal

Rebecca Pescone Martins em depoimento a Glau Gasparetto

Colaboração para Universa

12/07/2022 04h00

"Na adolescência, era confeiteira. Sempre gostei de cozinhar e, lá pelos 16 anos, comecei a fazer doces para vender na rua e cheguei até a abrir um negócio na área. Mas descobri que queria mesmo era ser mecânica. Quando minha mãe, Sara Cristina, estava grávida de mim, todos os exames de pré-natal apontavam que o bebê era do sexo masculino. Fui chamada de Pedro Henrique. Só descobriram que eu era mulher na hora em que eu nasci, realmente.

Minha mãe brinca que nasci menina, mas continuei com a personalidade do Pedro Henrique. Eu sempre gostei de carro, de futebol, de bicicleta, coisas totalmente diferentes do que se espera que uma menina goste. Bonecas, essas coisas, nunca fui fã. Meu pai, Saulo, e meu avô paterno, Cláudio, foram mecânicos. Meu pai hoje é metalúrgico, mas sempre mexia em carros, principalmente nos dele, e eu ficava lá, por perto, aprendendo.

A paixão mesmo veio aos 14 anos, quando pedi ao meu pai me levar em um evento de carros.

Falei: 'É isso que eu realmente quero para minha vida'. Daquela época em diante, meu pai passou a me levar junto para a oficina ou me chamava na garagem para mexer nos carros dele, para aprendermos juntos. E ele me ensinou várias coisas.

Choque na família

Quando resolvi abandonar o que fazia na confeitaria e comuniquei à família que iria me profissionalizar na mecânica, foi um choque para todo mundo, pois eu era de uma área muito diferente, né? Foi uma loucura, porque meus pais queriam muito que eu cursasse gastronomia e investisse nessa área. Mas eu estava decidida.

Comecei a pesquisar na internet, acompanhar vídeos para aprender mais, além de tudo o que meu pai me ensinava. Aos 17 anos, comecei o curso básico na Escola do Mecânico. Depois, estudei Elétrica e Injeção e passei a fazer cursinhos curtos, de Suspensão, Freios, por etapas.

Rebecca Menezes Martins - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rebecca Martins deixou a confeitaria de lado para se dedicar aos carros
Imagem: Arquivo pessoal

Agora, estou fazendo o Técnico de Mecânica Automotiva no Senai para me profissionalizar ainda mais e ter um novo curso no currículo, porque hoje em dia é só atualização que preciso fazer. Detalhe que essa é a primeira vez que há uma outra garota na sala de aula, além de mim, pois sempre fui a única mulher nos cursos anteriores.

Acredito que poucas mulheres se interessem por essa área por medo do preconceito, do que as pessoas falam, do machismo. Conheço muitas que já desistiram de tudo, por coisas que falaram a elas —e a gente escuta muita coisa pesada mesmo.

Já ouvi muitos comentários machistas, como quando chegava no trabalho e ouvia: 'Tem certeza de que é só você que vai fazer?', 'Você dá conta de fazer?', 'Nossa, só você de mulher aqui', por exemplo. É esse tipo de situação que incomoda.

Rebecca - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rebecca: 'A van é uma oficina móvel e eu vou até a casa, o trabalho ou onde a mulher estiver para fazer a troca, o balanceamento e o alinhamento dos pneus adquiridos na loja online'
Imagem: Arquivo pessoal

No começo, querendo ou não, isso te deixa insegura e um pouquinho receosa, mas depois que você começa, não liga para opinião dos outros —só vai! Sei que as coisas estão mudando e que nós, mulheres, estamos conquistando nosso espaço.

Então, por mais que tenha sido difícil lidar com o preconceito, o machismo e tudo o mais, eu havia colocado na cabeça que era aquilo que queria e iria continuar em frente. Nunca pensei na possibilidade de desistir porque, para mim, a mecânica sempre foi uma paixão. Tenho até duas tatuagens que mostram isso: uma chave de boca com um coração e um mapa de marchas.

Eu também fui a única mulher nas quatro primeiras oficinas em que trabalhei. Não havia mulher nem em outras funções. Aliás, sempre comecei como caixa ou no administrativo. Quando via, já estava mexendo no meio dos carros e acabava fazendo um pouco das duas áreas.

Nunca entendi por que me botavam no administrativo, mas foi a maneira que eu consegui chegar aonde eu estou hoje. Mas eu sabia que precisava provar que poderia fazer o trabalho de mecânica e conquistar o meu espaço.

No emprego em que estou agora, fui contratada justamente por ser uma mulher mecânica. Soube pelos meus professores da Escola do Mecânico, que sempre me indicam vagas legais. O mais interessante é que trabalho diretamente atendendo mulheres.

'Mulheres se sentem mais seguras quando eu as atendo'

Comecei na PneuStore em dezembro no ano passado, bem no retorno do movimento pós-pandemia. Sempre tive muita vontade de trabalhar com atendimento próprio para mulheres porque, querendo ou não, a mecânica é algo muito diferente e as mulheres têm insegurança de mexer em seus carros por causa disso.

Quando soube que era para trabalhar com a Van Mulher, que é voltada para o público feminino, foi um choque num primeiro momento, porque eu nunca tinha dirigido um carro tão grande assim. Mas depois das primeiras experiências, já peguei confiança.

Rebecca - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'Praticamente todo dia ouço comentários legais, como: Caramba, uma mulher mecânica!'
Imagem: Arquivo pessoal

A van é uma oficina móvel e eu vou até a casa, o trabalho ou onde a mulher estiver para fazer a troca, o balanceamento e o alinhamento dos pneus adquiridos na loja online. O trabalho é por agendamento e atendo essencialmente mulheres. Só quando a agenda está livre, se alguma cliente desmarcou em cima da hora, é que vou atender um homem.

No trânsito, quando me desloco para os lugares de atendimento, praticamente todo dia ouço comentários legais, como 'Caramba, uma mulher mecânica!'. As pessoas também perguntam se eu só dirijo a van ou se troco os pneus, como fazem para contratar o serviço, agendar e ser atendida por uma mulher e coisas desse tipo.

Quando chego para atender mulheres, sinto que elas se sentem à vontade para perguntar o que quiserem. E elas perguntam sobre tudo, pedem informações sobre pneus, sobre óleo, sobre algum barulho que estão escutando, se eu acho que tem solução para algo. Ainda pedem para orientar sobre o que precisam ficar mais atentas.

Acho muito legal atender mulheres, porque elas se sentem mais confiantes, pois muitas vezes querem perguntar e têm receio. Também vejo que se sentem mais seguras. Escutei isso várias vezes e é o feedback que eu tenho da loja.

Enquanto estou atendendo, sou supereducada, procuro ser a mais atenciosa possível, tenho paciência de explicar o que estou fazendo e não reclamo se a proprietária do carro quiser acompanhar meu serviço. Eu gosto de mostrar o que estou fazendo e as clientes falam que isso é bem legal. Os homens que atendo de vez em quando também dão esse feedback.

'Me ensina?'

Outra situação que me deixa feliz é com crianças. Quando chego em condomínios, principalmente, elas ficam encantadas e me enchem de perguntas, como: 'Posso ver?', 'Como é que faz?', 'Me mostra?', 'Me ensina?' E isso é muito legal!

Há alguns dias, uma garotinha de uns 7, 8 anos me disse algo que ficou marcado. O pai dela virou e falou: 'Filha, você não falou que gostava de carro? Olha aí: ela é mecânica também'. Na hora a menina respondeu: 'Caramba, eu não sabia que a gente podia realmente fazer isso. Agora eu quero fazer, pai!'.

Rebecca - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Rebecca: 'Acho legal todo dia ter um carro diferente, uma roda diferente para trocar, com tamanhos diferentes'
Imagem: Arquivo pessoal

Eu fiquei superencantada, até emocionada! Eu nunca imaginei que poderia ser inspiração para alguém e quando você escuta isso de uma criança, é mais especial. Ela até poderia ter esse sonho e desistido no futuro, mas por ter me visto ali, ficou com vontade de encarar tudo também.

'Estou montando meu próprio carro do zero'

Eu adoro minha profissão e acho que mexer em diversos carros diferentes é uma delícia. Acho legal todo dia ter um carro diferente, uma roda diferente para trocar, com tamanhos diferentes. São experiências novas o tempo inteiro.

Quanto aos carros, sou apaixonada por Caravan; até já tive uma. Quando eu pego um Opala para fazer ou um carro antigo —tipo aquelas S10, C20—, nossa, é incrível para mim! Maverick, então? Peguei um esses dias e fiquei surtada!

Uma das primeiras coisas que fiz quando tive a oportunidade de ser mecânica foi comprar meu próprio carro, um Gol BX, que estou montando do zero. Fico muito feliz em contar que o carro era literalmente um bagaço e eu o reconstruí, com o painel branquinho, roda vermelha e tudo.

Esse é meu hobby. Em relação ao trabalho, minha pretensão é buscar cada vez mais conhecimento para, daqui a alguns anos, ir para o interior e começar um negócio lá. Quero aprender tudo o que eu puder para, depois, começar uma oficina com tudo que se tem direito e ir abrindo filiais, com mais e mais oficinas mecânicas."

Rebecca Menezes Martins, 22 anos, mecânica, de Brasilândia, zona norte de São Paulo (SP)