Ele passou por transição de gênero no islã: 'Floresci quando tirei o lenço'
Um dos dias mais marcantes da vida do assessor jurídico Zion Sleiman, 26 anos, foi quando ele tirou pela primeira vez o hijab, lenço tradicionalmente usado por mulheres muçulmanas. Em 2018 ele vestiu uma camisa regata, shorts e saiu de casa pela primeira vez sem a peça usada por quem segue o islã. "Sempre sonhava que eu saía sem o lenço e ficava em desespero. Foi uma sensação de medo e liberdade. Ali foi o início de tudo: quando comecei a florescer", conta ele a Universa.
Parte da família de Zion é árabe, de origem no Líbano, e tem o islã como religião. Ele cresceu e mora em Foz do Iguaçu, no oeste do Paraná, onde existe a segunda maior comunidade árabe do Brasil —a maioria muçulmana.
Na infância, ele lembra, teve dificuldades de encontrar referências de pessoas trans, como ele, ou ter contato com alguém que pudesse entender o que estava sentindo.
"Desde criança, sempre me vi como um menino, mas as pessoas não viam isso em mim. Eu olhava para o espelho, tentava ver se alguém também se sentia diferente", conta.
"Não tive contato com esse tipo de informação. Eu tinha acesso à internet quando era criança, mas era bem restrito. Sempre tentei me encontrar em algo, em algum lugar ou alguém que sentia o mesmo que eu sentia, que enxergasse o que sentia", conta.
Como eu estava inserido na religião e na cultura no papel de gênero destinado à mulher, eu era cobrado por estar naquele papel, mas eu não me identificava com aquilo.
A principal dessas cobranças, ele conta, eram as roupas. "O hijab, na verdade, não é uma obrigação da mulher: é uma forma de demonstrar respeito a Deus. O que acontece é que muitos pais obrigam suas filhas a usarem. E eu permanecia usando por pressão de familiares", conta.
"A religião em si não obriga ninguém a fazer nada. Quem lê o alcorão vai ver que não tem essa obrigação. Isso é mais das pessoas do que da religião, elas que interpretam e têm ideias que estão enraizadas."
Rede de apoio e terapia foram cruciais no processo
Em 2016, Zion passou em duas graduações. De manhã, cursava Direito no UDC (Centro Universitário Dinâmica das Cataratas) e, à noite, estudava Química na Unila (Universidade Federal da Integração Latino-Americana). Na comunidade acadêmica, conheceu outros estudantes LGBTQIA +.
"Conheci muitas pessoas iguais a mim e passei a identificar sentimentos, emoções. Comecei a mergulhar e me aprofundar em mim e me conhecer", conta. Três anos depois, Zion decidiu passar pela transição de gênero, em 2019.
"Eu não estava bem comigo mesmo, não conseguia me enxergar exercendo uma profissão, entrando em uma carreira. Foi nesse momento em que saí de casa, meu pai falava que se eu quisesse fazer alguma coisa eu teria que ter autonomia e independência. Parei de usar lenço quando saí de casa e fui em busca de quem eu sou."
Encontrar uma rede de apoio, uma profissional de psicoterapia e escrever um diário foram ferramentas essenciais, conta, para atravessar esse processo.
Tive várias experiências ruins em psicoterapia, pessoas que tentavam de certa forma me corrigir e dizer que tudo o que sentia eram coisas da minha cabeça.
"Passei por um processo de desnutrição aguda, parei de comer, porque, além de tirar o lenço, tinha mais algo que não estava encaixado. Estava faltando algo em mim. E até eu entender que eu era um homem trans não teria um manual: eu tinha que buscar quem eu era navegando pela minha história", diz.
"Iniciei o processo terapêutico, com uma pessoa que me acolheu, sem julgamentos, e comecei a ter caminhos e possibilidades de descobrir quem eu sou. Muitos amigos, professores e colegas da faculdade ficaram felizes e me apoiaram. Parecia que eu tinha tirado 10 caminhões de peso das costas."
'Tentei me encaixar para ser visto como eu queria'
Anos depois da transição, ele conta que aprendeu muito. A primeira lição, ele diz, é que não deve se enquadrar no que a sociedade espera dos papéis de gênero.
No começo da transição, eu fazia de tudo para me encaixar em um padrão para as pessoas me verem como eu queria ser visto. Eu estava em busca de uma aprovação, queria cumprir a expectativa do que a sociedade tinha para me aceitar: então cortei o cabelo, usava roupas masculinas.
"Tudo o que era ditado como masculino, eu começava a fazer. Era como se eu tivesse que entrar numa 'seita dos homens', diziam para eu tratar as mulheres de determinada forma porque 'agora eu era homem'. Mas eu não queria mudar meu comportamento: eu sempre falava que eu não queria me tornar uma outra pessoa, só ser a pessoas que já estava ali."
"Depois de um tempo fui entender que eu não precisava me encaixar. Faz um ano que eu não corto o cabelo. Sempre gostei dele comprido. Gosto de pintar as unhas de preto, também. Mas até hoje ouço comentários como 'você está regredindo' ou 'vão começar a te confundir'. Mas parei de tentar estar neste padrão porque entendi que não vivo para a sociedade, vivo para mim."
Reaproximação com a cultura árabe
O segundo aprendizado de Zion: ainda há espaço possível para se aproximar da cultura árabe.
"Quando iniciei a transição, passei por muitos ataques de pessoas da cultura árabe e da religião muçulmana. Me fechei para a religião e me afastei de todo mundo, bloqueei todos os meus amigos muçulmanos. Mas quem me atacava era uma parcela das pessoas. O islã é uma religião que acolhe as pessoas, não é como as pessoas veem por fora, de que muitos muçulmanos e árabes praticam preconceito. Isso não representa a religião", diz.
Mais tarde, tive contato com mulheres muçulmanas e outras pessoas da comunidade árabe que me acolheram muito. E não preciso apagar minha história com a cultura árabe nem minha vivência no islã.
Zion conta que passou a seguir influenciadoras muçulmanas progressistas, que trazem temáticas como a população LGBT. "Acho trabalhos como esses muito importantes para desmitificar o islamismo e separar quem ataca em nome da religião", diz.
Por isso, ele pretende lançar um projeto, como um canal no YouTube ou podcast, para disseminar informações sobre o processo de transição de gênero e discutir estereótipos sobre a cultura árabe.
Outro plano é atuar como professor. No ano passado, Zion, que é consultor de diversidade e gênero, foi o primeiro professor trans a ensinar no curso preparatório de vestibular como voluntário da UTFPR (Universidade Tecnológica Federal do Paraná).
"Estou sempre em busca de espaços e diálogos para acolher pessoas LGBT+, especificamente para que pessoas trans saibam que existe sim um lugar onde elas possam ser e expressar quem são, sem medo. Que todas as pessoas trans possam se sentir abraçadas por mim e saber que estamos juntes nesse processo que é existir e reexistir todos os dias."
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