Doei meu bebê: estupro, abandono e pobreza marcaram a escolha de 3 mulheres
Mary, 47 anos, Lucia, 47, e Monique, 35, sofreram inúmeras formas de violência, da miséria ao estupro. Uma das consequências foram gestações não planejadas após essas tragédias. Sem condições psicológicas e financeiras, doaram seus bebês a quem julgaram que poderia criá-los melhor. E sofreram nova violência por suas escolhas.
No caso da empresária maranhense Mary e da agricultora paranaense Lucia, cujos nomes foram aqui trocados para preservar suas identidades, as doações aconteceram há mais de 30 anos, antes de a chamada entrega legal ser incluída na Lei da Adoção. O texto, de 2017, prevê amparo e assistência jurídica à mãe que queira doar seu filho ou recém-nascido. Antes disso, era comum a chamada "adoção à brasileira", sem acompanhamento da Vara da Infância e Juventude.
A autônoma mineira Monique, que também teve o nome modificado, procurou a Justiça para doar sua filha, em 2018, já dentro do que prevê a lei. Mesmo assim teve a polícia na porta de sua casa: alguém a denunciou por supostamente ter matado a criança, em um episódio que deixou traumas além dos que ela já estava suportando. E, por isso, quase perdeu a guarda de outra filha.
O tema da Adoção Legal veio à tona após os jornalistas Léo Dias e Matheus Baldi e a youtuber Antonia Fontenelle vazarem de forma irresponsável que a atriz Klara Castanho havia doado seu filho. Por causa disso, ela foi às redes contar que fora estuprada, e por isso decidiu entregar a criança fruto dessa violência. Um direito dela, violado de todas as formas.
A Universa, essas três mulheres contam como foi a difícil escolha que fizeram e quais consequências o ato trouxe para a vida de cada uma.
Grávida depois de dois estupros
"Eu fui estuprada em duas situações e acabei engravidando após essas duas violências. Como não tinha condições de criar meus filhos, eu doei os dois.
Sou do Maranhão, de uma família pobre, com 10 irmãos. Minha mãe sofreu violência, teve problemas psicológicos e foi internada num hospício. Então, meu pai foi distribuindo os filhos entre os tios. E fiquei com uma irmã dele, que tinha uma venda em uma parada de ônibus, na cidade de Caxias.
Os homens que lá paravam assediavam as mulheres. E eu era uma das meninas importunadas. Um deles me levava presente, bala, sapato, roupa. E eu, na condição que estava, jogada na casa da minha tia, me surpreendia com qualquer pessoa que me oferecesse algo. Um dia esse homem, que deveria ter 40 anos, falou que me levaria embora. Eu, com 15, fugi de madrugada com ele.
Mas ele me trancou num quartinho, longe de casa, e sofri todas as violências possíveis, inclusive com arma. Ele me torturava e dizia que ia me matar. Nesse período, fiquei grávida.
Após o parto, consegui sair da casa onde ele me colocou e encontrei minha tia. Mas a família me rejeitou. Fui considerada uma vergonha. Então decidi fugir para o Rio de Janeiro, onde tinha alguns amigos e parentes. Foi quando minha tia teve a ideia de dar meu filho para uma prima, que morava em Belém do Pará.
Hoje ele tem 27 anos e é um homem casado. Ele veio aqui no Rio me ver, em 2015, mas não foi um encontro bom. Ele disse que tem todas as mágoas possíveis de mim porque, na cabeça dele, eu o abandonei. Temos pouco contato por telefone.
O segundo estupro, a segunda gravidez
Saí do Maranhão aos 19 anos e fui morar na casa de uma prima. Na verdade, em cada época morava de favor com alguém. Foi quando conheci um policial que me deixou dormir na casa dele por alguns dias. Numa noite, ele me pegou à força e fui embora no dia seguinte. Descobri a gravidez três meses depois, e não tive coragem de abortar.
Nessa mesma época arrumei emprego numa pousada na Ilha de Paquetá, e escondi a gravidez. Estava morando em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, com uma prima e fui para a maternidade de madrugada, já com duas opções: entregar em uma igreja ou deixar em um lugar onde alguém pudesse ver.
O único recurso era não ficar com a criança. Eu estava sozinha, andava de casa em casa com uma mala de roupa. Quem vive de favor não tem apoio e escuta muitas ofensas.
Na enfermaria conheci um casal que tinha perdido o bebê no parto. Contei minha história e disse que queria alguém para cuidar da criança. Esse casal me levou para a sua casa, no Jacaré, na zona norte. Uma semana depois, consegui emprego de cozinheira em Minas Gerais e deixei a menina com eles.
Nunca mais a procurei. Hoje ela deve ter uns 24 anos. Ainda me pego pensando em alguns momentos com ela, do cheirinho dela, e me pergunto como ela deve ser hoje. Mas sei que ela teve uma vida melhor.
Eu carregava culpa em todos os sentidos da vida porque é uma dor infinita você ver uma pessoa levando seu filho embora e você não poder fazer nada.
Mas escolhi seguir em frente. Fui estudar e descobri que posso mudar a minha história. Hoje tenho uma empresa de limpeza e criei uma conexão com pessoas que me deram muitas oportunidades. Tenho minha casa no Recreio e estou vivendo hoje para frente."
Mary, 47, empresária, do Maranhão
"Minha mãe doou minha filha sem eu saber"
"Vim de uma família muito humilde e engravidei aos 16 anos. Quando minha mãe soube, ela disse que não ia criar filho de mãe solteira, e acertou a doação dela.
Nasci no Paraná, e aos 8 anos meus pais se mudaram para um assentamento em São Paulo, comigo e mais oito irmãos. Com a mudança e a situação de miséria, só pude estudar até a quinta série.
Minha mãe me trancava muito dentro de casa e, na adolescência, fiquei dois anos sem ter contato com ninguém. Mas um dia meu irmão mais velho me levou para uma festa, numa escola, e tive minha primeira relação aos 16 anos. Foi quando engravidei.
Quando minha mãe soube, ela disse que a partir daquele dia eu não moraria mais em casa. E eu não tinha intenção de morar com o pai da criança. Fui embora para casa de uma amiga, onde fiquei até os seis meses de gestação.
Nesse período, minha mãe ofereceu minha filha para uma família conhecida, sem eu saber. Quando dei à luz, ela disse: 'Essa criança aí já tem dono'. Não me deixaram nem amamentar. Falaram que eu tive febre e colocaram uma ama de leite para alimentar minha menina.
Quando fui para casa, disseram que ela ficaria na casa dessa família apenas por uns dias, para minha mãe cuidar melhor de mim. Mas três semanas depois me levaram para registrá-la no cartório e foi lá que descobri tudo.
Como moramos perto, sempre tive contato com minha filha, mas ela descobriu tudo quando completou 6 anos. Mesmo assim, me rejeitava. Quando fez 12, procurei um advogado para conseguir sua guarda e passei a visitá-la. Também entreguei todos os documentos do processo para ela entender que não a abandonei. E ela entendeu.
Hoje a gente se dá bem. Ela só não me chama de mãe, mas ela tem bom relacionamento com minhas outras três filhas. Contando com ela, tive quatro mulheres, entre 24 e 30 anos. E teve um que Deus tirou de mim.
Acho que minha mãe fez tudo aquilo porque também teve uma infância sofrida, e tinha dificuldade de passar amor para a gente. Fora isso, já sofremos muito de fome. Mas mesmo assim não pensei em doar a criança.
Hoje minha filha tem 31 anos, estudo e a família dela. Creio que ela teve uma vida melhor do que se tivesse crescido comigo. Só que para mim essa doação não me trouxe alegria, porque não tive ela no meus braços."
Hoje eu enfrentaria o mundo para criar a minha filha.
Lucia, 47, agricultora, do Paraná
"Gerei e doei amor"
"Tive um breve relacionamento com o pai da minha terceira filha, hoje com 3 anos, até que aconteceu de romper o preservativo. Tomei a pílula do dia seguinte mas mesmo assim engravidei. Quando entrei em contato, ele disse que não queria ser pai, e sugeriu o aborto, mas resolvi doar a criança. Hoje sei que compartilhei amor.
A princípio, pensei: 'Vou gerar e que Deus me dê força'. Já era mãe de duas, hoje com 18 e 13 anos.
Mas o tempo foi passando e entrei em desespero, porque estava desempregada com duas filhas, cada uma de um pai diferente. Foi quando pesquisei sobre a doação legal.
Procurei uma assistente social e fui muito bem acolhida. Também falei da minha decisão para minha mãe, que ficou ao meu lado.
Em nenhum momento o bebê deixou de ser minha filha. Eu cantava e conversava com ela, e expliquei o que estava acontecendo.
No dia do parto, liguei para o pai mais uma vez avisando que estava indo para o hospital, e ele apenas respondeu: 'Você seguiu com essa gravidez porque quis.' Nessa hora entendi que ele não merecia ser pai nem saber como ela era.
Soube que o casal que levaria minha filha já tinha uma criança, e me tranquilizei porque não eram pais de primeira viagem. Foi quando me senti capaz de entregar amor.
Fiquei com ela três dias no hospital. Troquei fralda mas não conseguia amamentar porque o leite não desceu. Ainda saí com ela nos braços. Ao me deixar em casa, a assistente social me perguntou se era aquilo mesmo que eu queria.
Lembrei que meu pai também abandonou minha mãe com duas crianças, e queria que pelo menos ela tivesse uma família, um pai.
Me despedi dela, dei um beijo e falei: 'Minha filha, mamãe te ama e para sempre vai te amar. Tenho fé de que um dia você vai reconhecer tudo que eu fiz e vai me aceitar'.
Quando entrei em casa, bateu o desespero e me perguntei o que foi que eu fiz.
Acabei descobrindo, sem querer, quem foi a família que a adotou, porque pela lei a gente não tem acesso a nomes. Meu coração se acalmou porque vi que tive sorte.
Mas acabei sendo denunciada. Do nada, um médico do hospital me mandou mensagem dias após o parto perguntando se eu tinha doado a criança. Respondi que 'não', e pensei que alguma coisa estava acontecendo.
Vinte dias depois a polícia bateu na porta da minha casa dizendo que recebeu uma denúncia de que eu tive um bebê e que matei a criança. Tinham todos os dados, inclusive a hora do parto.
Comecei a chorar, entrei em desespero e disse que ia ligar para a assistência social. Desfizemos o mal-entendido, mas ficou o trauma, para mim e minhas filhas.
Fui caluniada, mesmo tendo feito tudo de forma legal. Muitas pessoas têm medo de doar amor justamente por isso, achando que é crime. Quem me expôs foi o pai de uma das minhas filhas, que é médico e teve acesso ao meu prontuário. Ainda entrou com processo de guarda por achar que cometi um crime e não posso mais ter o direito de ser mãe.
Mas no meu coração está tudo muito bem resolvido. Fiz tudo isso porque achei que era o melhor, e de fato não poderia ter acontecido de forma mais divina.
Pela lei, eu posso deixar uma carta caso ela queira me procurar quando completar 18 anos. Ainda vou escrever contando tudo, para ela não pensar que foi rejeitada, e sim muito amada.
Monique, 35 anos, autônoma, de Minas Gerais
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