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A busca frustrada por um aborto legal no Brasil: 'Meus filhos iam morrer'

A artista plástica e publicitária Lais Chiavone descobriu que os gêmeos que esperava sofriam de má-formação e não poderiam sobreviver fora do útero - Arquivo pessoal
A artista plástica e publicitária Lais Chiavone descobriu que os gêmeos que esperava sofriam de má-formação e não poderiam sobreviver fora do útero Imagem: Arquivo pessoal

Lais Chiavone em depoimento a Rute Pina

De Universa, em São Paulo

18/07/2022 04h00

Em dezembro de 2018, a artista plástica e publicitária Lais Chiavone descobriu uma gravidez de gêmeos aos 38 anos. Na época, ela já estava no terceiro mês da gestação e foi fazer o exame morfológico, ultrassom que permite avaliar o desenvolvimento físico do feto. Descobriu que os bebês sofriam de má-formação e compartilhavam o torso e os órgãos, com exceção do coração.

Segundo ela, durante a rápida consulta de pré-natal no hospital particular Santa Joana, localizado na região da avenida Paulista, em São Paulo, um médico chamou os fetos de "monstruosidades" e disse que eles não sobreviveriam após o parto. Foi quando a publicitária começou uma peregrinação em busca de informações e para tentar um aborto legal no país.

"É inominável o jeito que tratam a gente no Brasil. É desumano. Foi destrutivo para mim, muito violento."

No Brasil, a lei prevê direito ao aborto em casos de gestação após estupro, risco para a mãe e, em 2012, foi adicionado o caso de feto com anencefalia, após discussão no STF (Supremo Tribunal Federal).

No entanto, há advogadas e ativistas pró-aborto que defendem que, depois de aprovado o procedimento em casos de anencefalia, existem brechas para a autorização de outras situações em que há impossibilidade de vida fora do útero. É o que afirmou a defensora pública Nálida Coelho, coordenadora do Nudem (Núcleo Especializado de Defesa dos Direitos das Mulheres) da Defensoria Pública de São Paulo em entrevista a Universa.

"Essa orientação do STF pode ser utilizada para outras doenças em que há incompatibilidade de vida extrauterina. São casos semelhantes à anencefalia e, pela Justiça, não justificariam tratamento diferenciado. O direito protege bens jurídicos que são passíveis de proteção, como a vida. Nessa hipótese, não há bem a ser protegido, não existe crime."

Mas, em sua saga de consultas a médicos, especialistas e advogados, a publicitária sempre ouviu negativas. Lais decidiu, então, ir à Espanha, onde o aborto é legal. Realizou lá o procedimento, que custou em torno de R$ 6.000 na época, em uma clínica particular em Barcelona.

"Sempre fui uma mulher ativista, mas o que aconteceu comigo mudou estruturalmente quem eu sou e para onde olho. Eu não tinha conhecimento sobre os impactos da proibição do aborto. Ninguém faz isso porque quer, independentemente da motivação."

Leia, abaixo, o relato completo de Lais.

"O pior dia da minha vida foi em janeiro de 2019, no terceiro mês de gravidez, quando descobri que os meus gêmeos sofriam de má-formação. Eles compartilhavam o torso e os órgãos, com exceção do coração.

Naquele dia, ouvi que o que eu carregava na barriga eram monstruosidades. Que eles eram inviáveis, que morreriam a qualquer momento. Que se não morressem dentro de mim, morreriam alguns segundos depois de nascer.

Naquele mesmo momento, o médico me disse que eu poderia esquecer o aborto. Falou que eu teria de esperar a morte deles, que a Justiça não deferia nenhum pedido como esse.

Depois do diagnóstico, me deixaram com o meu marido em um cubículo, durante uma hora e meia, esperando o laudo, que selaria, enfim, o pior diagnóstico que uma mãe pode receber: seus filhos vão morrer.

Eu fui me dando conta da falta de humanidade, da gravidade da condução do caso, do despreparo do médico —e de todos os profissionais presentes—, que nos largou lá, sozinhos, à mercê do nosso pior pesadelo.

Mas não foi só isso. Meu obstetra me disse que lavaria as mãos, que ele não iria me ajudar a abortar, porque isso era contra o que ele acreditava. Comecei a ativar meus contatos e cheguei até o presidente de uma maternidade bem importante. Descobri que, além da má-formação, os fetos não estavam no lugar certo, e eu estava correndo risco de hemorragia. Mas que, de novo, eu não poderia fazer nada.

Ou seja, meus filhos iriam morrer e, para que isso pudesse acontecer como previa a lei, eu teria que correr risco de vida também.

A única pessoa da área da saúde que me deu algum tipo de solução me disse para ir a uma clínica de cirurgia plástica e tomar um remédio. Falou que eu passaria mal e que deveria ir para o hospital depois.

Ninguém me deu a mão, ninguém cuidou, ninguém ofereceu ajuda, não havia empatia, não havia nada.

Eu estava na 12ª semana de gravidez, tive que explicar para a minha filha que os irmãos dela não viriam. Como se houvesse algum jeito de explicar...

Eu estava com 38 anos e tive que me conformar que eu não estava protegida por ninguém.

Entendi que eu era impotente.

E se isso acontecia comigo, mulher branca, de família abastada, com uma carreira sólida, cheia de conexões, com um marido maravilhoso? Imagina o que seria de uma mulher pobre e preta? O que ela estaria passando?

E então eu conheci a ira. A raiva. O instinto de sobrevivência.

Não. Eu não ia esperar e testemunhar a morte dos meus filhos, seu sofrimento. Não, eu não ia fazer a minha filha de 5 anos assistir a esse sofrimento com a minha conivência e omissão. Não, eu não ia fazer o que me mandavam fazer. Que se foda o que diz a Bíblia, que se foda o que diz a Igreja e que se foda o que diz a lei.

Aqueles eram meus filhos e não havia nada nem ninguém que me impedisse de interromper o sofrimento deles e da minha filha. E não haveria nada que me faria achar que eles eram monstruosidades. Nada.

Não há nada que uma mãe não faça pelos filhos. Nada.

E por todos os privilégios que me cabiam fui para um país civilizado, no final daquele mesmo mês. Um local que trata as mulheres com a dignidade que a gente merece, que considera aquele momento o pior da vida de uma mulher.

Lá, encontrei o primeiro olhar que eu reconhecia. Na cadeira em frente à clínica, uma mulher com a minha idade e que provavelmente foi fazer o mesmo que eu fui: interromper uma gestação.

Porque só outra mulher sabe o que é isso. E aí eu conheci a sororidade silenciosa. Aquele olhar que te abraça a alma, que diz que entende o que você está passando. Pela primeira vez.

E aí eu conheci a resiliência, a minha, a potência, a convicção, a maternidade pós-vida, a conexão que não pode ser quebrada com os nossos filhos.

Não há homem, não há governo, não há religião, não há nada capaz de segurar uma mulher que pense sozinha, que tenha autonomia, que tenha afeto por si mesma.

Mas há homens, há governos e há religiões que nos deixam inseguras e que nos matam todos os dias.

A gente precisa falar sobre isso, falar alto, gritar, isso acontece com muitas de nós, todos os dias. Não bastasse o luto da perda, ainda temos que lidar com o julgamento de quem deveria cuidar da gente.

Eu desejo que cada uma de nós conheça a própria potência. Desejo que cada uma de nós acolha e esteja apta a estar na trincheira para que nenhuma mulher e mais nenhuma menina seja obrigada a morrer.

Uma última coisa: o mundo não vai mudar com esperança. O mundo quem muda somos nós. Cada um dos direitos femininos conquistados custou as vidas de muitas de nós.

Que sejamos capazes de impedir o retrocesso. Contem comigo."