'A justiça toma decisões baseada em estereótipos de mulher', diz advogada
O que acontece em um tribunal não depende só da aplicação correta das leis. Decisões judiciais estão carregadas da visão de mundo de quem está por baixo da toga. Em um país que insiste em apontar o dedo para as mulheres, é quase natural que, até mesmo quando vítimas, elas acabem sendo tratadas como rés no decorrer do processo. Levam-se em consideração o comprimento da saia, a quantidade de parceiros, as escolhas de carreira. Perguntam se "o pai" concorda com a interrupção de uma gravidez resultado de estupro.
É para mudar este cenário que trabalha a advogada Fabiana Severi, 44, finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Acesso à justiça. Desde o ano passado, ela está à frente do projeto Reescrita de Decisões Judiciais em Perspectiva Feminista - Brasil. Trata-se de uma rede de pesquisadoras que tem como objetivo, como diz o nome, reescrever os textos, respeitando direitos, desejos e condutas da mulher e levando em consideração os benefícios atribuídos aos homens simplesmente pelo fato de serem homens.
O que acontece com frequência é uma desqualificação muito grande da palavra da mulher. Fabiana Severi, advogada
Além de trazer um novo olhar para o que já aconteceu, o trabalho pretende construir embasamento teórico para o julgamento de novos casos. Professora associada da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo (USP), integrante do Consórcio Maria da Penha e líder do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Desigualdades da USP, Fabiana leva o projeto para dentro da sala de aula. Discute as decisões e conta com a participação dos estudantes para a redação dos novos textos.
Até o momento, por volta de 400 alunos participaram ou foram impactados pelo projeto. A finalista acaba de apresentar os primeiros resultados em um encontro global de Direito e Sociologia em Lisboa, em Portugal. Além disso, no começo do ano que vem, pelo menos 14 decisões reescritas farão parte de um livro, previsto para ser lançado em 2023.
"O projeto Reescrita é uma pesquisa e também uma intervenção política dentro dos cursos de Direito em escala nacional, mas em uma aliança internacional. Porque vamos mudar a forma que operamos o Direito dentro da academia".
Da universidade para o mundo
Impactar na formação profissional é um propósito antigo da finalista. Apesar de gostar muito da área do Direito, Fabiana nunca quis ser jurista ou juíza. Seu sonho sempre foi ser professora. Nascida em Brodowski (SP), mesma cidade do pintor Candido Portinari, ela vem de uma família de origem agrícola.
Lecionar poderia ser a única coisa que cabia em seu horizonte. Mas, graças às educadoras que passaram por sua vida, o destino foi um pouco diferente. "Elas me incentivaram e explicaram que havia faculdades públicas que eu não precisaria pagar", diz. Foi assim que Fabiana aprendeu, na prática, o papel transformador que um docente pode ter na vida de um jovem estudante e, consequentemente, na sociedade.
No projeto Reescrita, cada pesquisadora escolhe uma decisão judicial, de um caso já processado e finalizado, e faz uma redação crítica em um trabalho conjunto com seus alunos. A ideia é colocá-los para pensar os casos sob uma perspectiva que leva em consideração o gênero e o contexto social das mulheres envolvidas.
Ela já era professora há 17 anos, quando descobriu a semente para o Reescrita. Foi em 2018, em um encontro global de Direito e Sociologia, quando conheceu um grupo de acadêmicas, advogadas e ativistas feministas canadenses que criaram, em 2006, o "Women's Court Of Canada Project" (Projeto Tribunal Canadense de Mulheres, em tradução literal do inglês). O objetivo ali era mostrar que as decisões da Suprema Corte do Canadá poderiam ter sido escritas ou, até mesmo, tido resultados diferentes caso tivessem sido tomadas sob uma perspectiva feminista. O projeto tem se replicado em escala mundial por conta de uma rede de pesquisadoras.
Ao trazê-lo para o Brasil, a professora convidou, inicialmente, as amigas e conhecidas e acabou criando uma rede com 56 acadêmicas, que formam 28 grupos de pesquisa espalhados por todas as regiões do país. Fabiana, no entanto, não quer restringir o projeto aos computadores e cabeças das pesquisadoras, mas principalmente abrir o debate na sala de aula dos cursos de Direito.
Assim, já revisitaram, por exemplo, o caso de Maria da Penha, cujo agressor ficou em liberdade após uma dupla tentativa de feminicídio. Trabalharam ainda com o feminicídio de Angela Diniz, em que seu assassino, Doca Street, foi inocentado no primeiro julgamento com a alegação de legítima defesa da honra. A história de Angela foi relatada no podcast "Praia dos Ossos".
"Até então, os cursos de direito no Brasil não tratavam sobre gênero, muito pelo contrário. Você tem que se esconder ali como mulher ou qualquer outra categoria social minoritária. Assim o projeto mobiliza os estudantes a se aproximarem das teorias e métodos feministas para a interpretação e aplicação da lei. Isso acelera, ganhamos anos de avanço nos direitos das mulheres".
Uma das participantes do laboratório deste ano, Juliana Silveira Barbosa, 28, está no primeiro ano da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto e sempre teve a ideia de que o Direito era um espaço de legitimação de injustiças.
Aprendemos a identificar vieses que acabam por viciar a decisão. Em algumas, o viés de gênero estava bem implícito. Juízes e juízas não podem decidir a vida de alguém com base nas suas próprias convicções, preconceitos, ideologia. Juliana Silveira Barbosa, estudante de direito
Por uma justiça mais imparcial
Com essa intervenção, Fabiana Severi espera contribuir com o trabalho jurídico. "O que tenho acompanhado nas pesquisas sobre acesso à justiça e capacitação de juízes e juízas, é que eles e elas têm medo de falar em gênero ou em feminismo porque é como se estivessem maculando a parcialidade".
O projeto Reescrita busca mostrar justamente o contrário: que, na prática, uma decisão com perspectiva feminista pode ser ainda mais imparcial.
Ao ficarem sabendo do trabalho, juízes e juízas entram em contato com Fabiana. "Eles não têm acesso ou não conhecem abordagens teóricas que permitam um outro jeito de pensar decisão judicial. Eles querem fazer diferente, mas não tem repertório, contato com a teoria. E tem muitas juízas que mandam suas decisões para que a gente reescreva e critique o trabalho delas, porque elas querem fazer melhor".
Um dos casos estudados pelo laboratório de Fabiana, por exemplo, foi o de uma mãe que entrou com um processo por abandono afetivo contra o ex-marido. A mulher alegava que, apesar do ex-companheiro ter pago as pensões do filho que completaria 18 anos, ele não havia participado da vida do rapaz. Não foi a festas de aniversário nem foi presente afetivamente e, por isso, pedia uma indenização.
O caso foi indeferido na primeira instância e a mulher entrou com recurso no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. "Ao votar pelo indeferimento, o desembargador construiu o estereótipo da mulher vingativa, que estaria processando o ex-marido por ainda estar ressentida pelo divórcio", diz Fabiana (rindo de desespero).
"A justiça ainda toma decisões baseada em estereótipos do comportamento da mulher e acaba, assim, prejudicando a garantia de direitos delas", afirma a professora.
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, basta consultar o Regulamento.
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