Médicos a favor do aborto legal dizem se sentir perseguidos pelo governo
Duas iniciativas recentes partiram do governo federal nas últimas semanas para tentar criminalizar médicos que cumprem a lei e realizam aborto de forma legal: uma cartilha do Ministério da Saúde que afirma que "não existe aborto legal, todo aborto é um crime" e o pedido de investigação feito pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos contra os médicos de Santa Catarina que interromperam a gravidez de uma menina de 11 anos, em junho —a menina tinha direito ao procedimento por ter sido vítima de estupro e correr risco de morte.
Para médicos defensores do aborto legal ouvidos por Universa, as duas ações são tentativas de perseguir e intimidar profissionais da saúde e tornar ainda mais difícil o acesso à interrupção da gravidez, permitido por lei em três situações: em casos de estupro, risco para a mulher ou anencefalia do feto.
A médica Melania Amorim, cofundadora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, e o médico Cristião Rosas, presidente da organização Doctors For Choice Brazil, afirmam que a perseguição a médicos que defendem o direito ao aborto sempre existiu, mas que é a primeira vez que essa movimentação parte do Estado.
Tenho certeza que essa é uma forma de intimidar a categoria médica e fazer perseguição aos direitos das mulheres e das meninas.
Melania Amorim, cofundadora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras
Eles também criticam a postura do governo Bolsonaro frente a casos recentes de estupro e aborto que ocuparam o noticiário —ao comentar o caso da menina de 11 anos que teve o aborto negado em hospital de Santa Catarina, por exemplo, o presidente chamou de "inadmissível" que a gestação tenha sido interrompida.
Médicos veem 'abuso de poder' do governo
Documentos enviados há uma semana pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos ao Ministério Público solicitam a apuração da "responsabilidade cível e criminal" da equipe médica que deu prosseguimento ao aborto, realizado em conformidade com a lei. Também foram enviados ofícios ao Conselho Federal de Medicina e ao Conselho Regional de Medicina para apurar "a conduta ética" da equipe.
Tanto Melania quando Cristião classificam a tentativa de investigar os médicos que fizeram o aborto em Santa Catarina como "perseguição" e tentativa de intimidar os profissionais.
"A situação é tenebrosa. É abuso de poder. Todos sabem que ali no procedimento da equipe médica não há crime nenhum. Eles seguiram a lei realizando um procedimento permitido legalmente há 82 anos", afirma Cristião Rosas. "Estamos diante de um ativismo do Estado brasileiro contra os direitos das meninas e mulheres brasileiras."
"O aborto faz parte da vida reprodutiva das mulheres brasileiras", afirma o médico, citando que mais de 500 mil abortos clandestinos acontecem todos os anos no Brasil e que, a cada cinco mulheres de até 40 anos, pelo menos uma já interrompeu uma gravidez.
"Fechar os olhos a isso e dizer que não é um problema de saúde pública —como afirmou o secretário de Atenção Básica do Ministério da Saúde, o ginecologista Raphael Câmara, durante audiência pública em junho— é fantasioso, ultrapassa qualquer limite da lógica."
Ameaças de morte, cartazes e 'fetinhos'
Melania Amorim, que atua como médica há mais de 30 anos e em 2018 ajudou a fundar a Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, enfrenta há tempos a antipatia da ala mais conservadora —além dos ataques que acontecem pelas redes sociais, fenômeno mais recente, ela encarou manifestações com cartazes se referindo a ela como "assassina de bebês" e já foi alvo de "fetinhos" de plástico, atirados contra ela durante uma palestra.
"Estou nessa batalha [pelo aborto legal] há décadas e, antigamente, antes das redes sociais, esses grupos —que não são pró-vida, são pró-nascimento, mesmo que isso custe a vida das mulheres— iam para palestras e jogavam 'fetinhos' nos médicos, levavam cartazes, tentavam impedir a nossa entrada nos serviços que realizam aborto legal", lembra.
Há dois anos, na época em que veio à tona o caso de uma menina de 10 anos, do Espírito Santo, que foi vítima de estupro e teve o aborto negado por um hospital, ela participou de uma live nas redes sociais com o médico Olímpio Morais, diretor do hospital onde a criança conseguiu realizar aborto, em Pernambuco, e passou a receber ameaças ainda mais intensas.
"Eram ataques de baixo calão: me chamaram de 'assassina', 'inimiga dos bebês'. Fui alvo de fake news, ameaçaram meus filhos", lembra a médica, que chegou a registrar um boletim de ocorrência.
Tanto Melania quanto Cristião Rosas concordam que, embora os ataques contra médicos que praticam aborto mesmo que de forma legal aconteçam há décadas, a situação ficou mais grave desde o início do governo Bolsonaro.
"Nunca foi um cenário fácil no Brasil —menos de 4% dos municípios tem serviço de aborto legal e há relatos de mulheres que precisam viajar mais de 700 quilômetros para ter acesso a esse direito— mas nunca houve esse tipo de ameaça".
Maioria dos brasileiros defende aborto legal
A maioria dos brasileiros é favorável ao aborto: 67% da população é a favor da interrupção da gravidez em situações específicas; e o número sobre para 83% especificamente quando a gestação decorre de um estupro —como aconteceu no caso da menina de 11 anos, que realizou o procedimento em Santa Catarina.
Os dados são da "Pesquisa de Opinião sobre Religião, Aborto, Política e Sexualidade no Brasil", produzida pela ONG Católicas Pelo Direito de Decidir, em parceria com o Instituto Ipsos, e divulgada com exclusividade a Universa.
Para o médico Cristião, presidente da Doctors For Choice Brasil, embora a maioria da população brasileira apoie o aborto legal, "no atual governo as pessoas que são contra o aborto se sentem respaldadas, empoderadas pelo conservadorismo, e praticam ataques violentos, muito pesados".
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