Topo

Isabel Allende faz 80: 'Mulheres não são rivais, é invenção dos homens'

A escritora Isabel Allende completa 80 anos nesta terça, 2 - divulgação
A escritora Isabel Allende completa 80 anos nesta terça, 2 Imagem: divulgação

De Universa, de São Paulo

02/08/2022 04h00

"Sou cercada por mulheres que nunca desistem", diz a escritora Isabel Allende, que completa 80 anos nesta terça-feira (2). A autora de língua espanhola mais lida no mundo tem, assim como as personagens de seus livros, uma história de vida marcante. Isabel nasceu no Peru, mas ainda criança foi para o Chile, onde cresceu. Em 1973, ela trabalhava como jornalista quando a ditadura tomou conta do país. Na época, por causa do seu trabalho, ela foi colocada na lista de perseguidos pelo ditador Augusto Pinochet e se viu obrigada a partir para o exílio na Venezuela. Sem muitas alternativas de trabalho, começou a escrever romances. Deu certo: vendeu mais de 75 milhões de exemplares de seus 25 livros lançados e traduzidos em mais de 42 idiomas.

Ao longo dos anos de carreira, Isabel Allende se tornou uma referência feminina e feminista para muitas mulheres —e se orgulha muito disso. "Uma das coisas que me deram mais felicidade em ser mulher é a companhia e a solidariedade de outras. Não somos rivais. Isso é uma história que os homens inventaram. Somos companheiras, irmãs. Uma mulher sozinha é muito vulnerável. Mas unidas somos invencíveis", disse, em entrevista a Universa e outros jornalistas da América Latina para divulgar a minissérie biográfica "Isabel, a História íntima da Escritora Isabel Allende", lançada no último dia 29 no canal LifeTime.

A série traz três episódios de suas memórias, recontando seu envolvimento com a política, feminismo e também seus dramas pessoais - como a morte da filha Paula, em 1992, para ela um dos momentos mais difíceis de assistir. "Meu marido viu primeiro e me preparou. Meu filho não quis ver".

Paula foi uma das inspirações de Isabel ao criar a Fundação Isabel Allende para empoderar mulheres e meninas em todo o mundo. A causa feminista é uma de suas grandes "paixões": "Tenho uma obsessão em defender as mulheres e levar adiante o movimento de libertação das mulheres, causa pela qual me apaixonei e continuo me apaixonando."

Bem-humorada, atenciosa e interessada, Isabel conversou por quase duas com a imprensa e fez essa jornalista brasileira com espanhol enferrujado se sentir acolhida: "Pode fazer suas perguntas em 'portunhol' que a gente se entende', disse, rindo. Leia os principais trechos da entrevista - já traduzidas para o português -, a seguir.

UNIVERSA A série mostra como você tomou muitas decisões difíceis ao longo da vida. Inclusive, em momentos da história em que isso era ainda mais difícil para as mulheres. De onde veio seu empoderamento?
ISABEL ALLENDE Eu nasci nos anos 40, em uma família conservadora, católica, patriarcal. Eu não fui para a faculdade mesmo sendo uma estudante muito boa. Toda ênfase aos estudos foi dada dos meus irmãos, não a mim, porque eu era uma mulher.

Fui criada para ser mãe e esposa de alguém. Então, sair desse ambiente foi um ato de rebelião e de muita sorte, porque se não tivesse sido acompanhado de sorte não estaria aqui.

É por isso que eu acho tão importante o trabalho que minha fundação faz de dar educação e informação para as mulheres. Muitos dos programas que temos são para dar às mulheres as ferramentas para trabalhar e realizar seu potencial.

Agora eu, como disse, tive sorte. A primeira foi minha mãe, que acreditou em mim, que acompanhou, me ajudou a ser diferente dela. Eu não queria ser dependente financeiramente, queria trabalhar, pagar minhas próprias contas...

O exílio foi a decisão mais difícil. Eu era jornalista no Chile. O golpe militar veio em 1973. Tive que deixar meu país sem nada e me encontrar na Venezuela, que era um país generoso e aberto, mas sem amigos, sem contatos, sem trabalho, sem dinheiro, longe da minha família. Longe de tudo o que eu sabia.

Não consegui encontrar trabalho como jornalista em lugar nenhum. E foi na necessidade, em desespero e nostalgia, que pude escrever meu primeiro romance, "A Casa dos Espíritos". E isso mudou completamente a minha vida.

A autora de língua espanhola mais lida no mundo, Isabel Allende completa 80 anos neste 2 de agosto - divulgação - divulgação
A autora de língua espanhola mais lida no mundo, Isabel Allende completa 80 anos neste 2 de agosto
Imagem: divulgação

Você citou o trabalho da Fundação Isabel Allende, que foca em empoderar mulheres. O que você deseja para as mulheres hoje?
Um mundo melhor, em que predomina a solidariedade, a paridade de gênero, a inclusão, a beleza, a compaixão e a paz. Não ter que viver na guerra, não ter que viver defendendo-se e com medo. Para que todas possam tirar vantagem da maravilha deste planeta, cuidando dele e um dos outros. Tudo o que as mulheres fazem instintivamente para os filhos, quero para elas.

O quanto você acha que a luta das mulheres progrediu ao longo dos anos?
O movimento feminista alcançou muito, mas não alcançou o que pensávamos que já tínhamos conseguido em todos esses anos. Nós não terminamos o patriarcado, nós não acabamos com o machismo e qualquer emergência de qualquer tipo é suficiente para as mulheres perderem todos os seus direitos. Então, é muito difícil.

Nem tudo o que queríamos foi alcançado, mas isso não significa que o movimento falhou. Significa que a estrada é lenta. O objetivo final é substituir o patriarcado que dá supremacia ao homem por uma gestão, uma gestão do mundo em que homens e mulheres, em igualdade de números e com igual poder, tomem as decisões.

Como você vê a luta feminista atualmente?
A missão da minha fundação é investir em dar poder para as mulheres e meninas, as mais vulneráveis e mais pobres. Nesse trabalho, vejo que há regressão em muitos aspectos. Em muitos países da América Latina e América Central, as mulheres lutam pelos direitos ao aborto. Nos Estados Unidos, esse direito acaba de ser reduzido.

Temos que estar sempre atentos, você sempre tem que estar ciente do que eles podem tirar de você.

Vivemos em uma sociedade cujo pilar — o pilar do patriarcado — é a subjugação das mulheres e de todos aqueles que não estão no topo da hierarquia que o patriarcado considera que se deve estar no poder. Então, nesse sentido, eu vivo preocupada.

Com 80 anos vejo que muita coisa foi conquistada, mas há muito o que fazer e isso me preocupa. E vejo que o mundo está passando por uma grave crise. Mas estou otimista porque ao longo da minha vida vi muitas crises - e a superação delas.

Vejo uma geração jovem que se mexe. Acredito e tenho fé que essa geração jovem está mudando muitas coisas. Vejo homens dividindo tarefas que eram chamadas de femininas, como criar filhos. Agora, nos banheiros masculinos há espaço para trocar as fraldas das crianças. Meu primeiro marido, quando tivemos os filhos, nunca preparou uma mamadeira, não trocou uma fralda. Isso mudou. Então, olho com otimismo e com esperança de que é o início de uma mudança muito mais profunda.

Quais mulheres marcaram ou influenciaram sua vida e seu trabalho?
Eu não estaria aqui falando com você se não fosse pela ajuda que tive das mulheres na minha vida. Posso mencionar alguns homens. Meu avô, meu filho, meu padrasto... Mas as pessoas que realmente me ajudaram foram minha mãe, minha avó, minha sogra, as mulheres que trabalhavam na minha casa, que me permitiram trabalhar fora, minha nora, que é minha amiga e minha parceira e aquela que gerencia a fundação. Sou muito grata a elas.

Hoje as mulheres que inspiram meu trabalho são as que eu encontro através da Fundação, que são mulheres de alta vulnerabilidade, de alto risco, que passaram por traumas incríveis, perderam tudo e se reerguem. Elas se apresentam com um senso de solidariedade, capazes de cantar, rir, serem solidária, generosas. Alguns delas se tornam líderes em sua comunidade.

São essas mulheres que me interessam. Aquelas lutadoras que nunca desistem. E estou cercado por elas. Não acredito que sejam exceções. Não preciso inventar essas mulheres.

Desde sexta-feira (29) o canal Lifetime exibe a minissérie "Isabel: A história íntima da escritora Isabel Allende" - divulgação - divulgação
Desde sexta-feira (29) o canal Lifetime exibe a minissérie "Isabel: A história íntima da escritora Isabel Allende"
Imagem: divulgação

A morte de sua filha, Paula, foi um marco em sua vida. Como isso mudou seu jeito de ver o mundo?
Paula morreu em dezembro de 1992. E eu começo todos os meus livros em janeiro. Em 8 de janeiro. Primeiro, pensei que não seria capaz de escrever de novo na minha vida, mas minha mãe estava comigo e disse: "Se você não escrever, você vai morrer." E ela me entregou 180 cartas que eu tinha enviado para ela durante um ano e ela disse: "Leia-as para que possa ver que a única saída de Paula era a morte. Para que você entenda o que aconteceu e aceite." "Essa dor", disse minha mãe, "é um túnel longo e você tem que passar por isso, passar por isso sozinha, passo a passo. Lágrima, lágrima. Mas há luz no final. Você vai ter que chegar a esse fim de alguma forma. Sua maneira de chegar lá é escrever". Baseada nas cartas da minha mãe que eu tinha escrito e em algumas anotações que fiz no hospital em Madri, comecei a escrever um livro de memórias.

Escrevi sem a intenção de publicá-lo, mas uma vez que o livro terminou, todos disseram que ele precisava ser publicado. O livro, assim como a série, começa com a morte de Paula. Foi o livro que teve mais eco e mais ressonância de todos os que escrevi.

O que é a morte para você?
Quando Paula morreu em meus braços, senti algo acontecendo em outro lugar. Que não era o fim. Foi uma transição. O começo de uma jornada. Senti que era um limiar.

Mais recentemente, depois que minha neta Nicole nasceu, a recebi do colo de sua mãe para cortar o cordão umbilical. Fui a primeira pessoa a segurá-la em meus braços. E também aquele momento, aquele longo momento de nascimento, de esforço, aquele momento misterioso e sagrado que ela veio de outro lugar, que ela estava cruzando o limiar da vida. Em ambos os casos, um limiar.

Você está prestes a completar 80 anos, é uma das autoras mais vendidas do mundo e agora ganha uma minissérie sobre tua vida. Você se considera uma mulher de sucesso?
O sucesso é tão relativo. Você tem sucesso em pequenas coisas e você tem grandes fracassos em grandes coisas. As pessoas me perguntam como é ser uma celebridade por conta dos livros que vendi. Mas só percebo essa coisa da "celebridade" quando viajo e encontro o público. No resto do tempo, eu estou neste sótão sozinha, escrevendo e aqui nada muda. Eu tenho uma casa muito pequena, eu tenho um carro velho, eu não preciso de mais.

Não veja essa vida de celebridade que talvez outras pessoas vivam, com ostentação ou com vaidade. Isso não me alcança.

Se pudesse dizer algo para Isabel mais jovem, que é retratada na série, o que você diria?
Eu diria que há tempo. Não se apresse tanto. Essa vida é longa e há chances de cometer erros e corrigir erros ou viver com eles.

Vivi minha juventude com pressa. E agora que tenho mais calma, vejo que os dias são muito mais ricos, porque posso apreciá-los mais, posso vivê-los mais intensamente. Quando era jovem, eu estava fazendo muito o tempo todo e para fazer e fazer e fazer, muitas vezes eu parei de ser eu mesma. Que é a coisa mais importante de todas.

A séria conta experiências muito íntimas e, muitas vezes, dolorosas. Não é exposição demais?
Tem uma pergunta que minha mãe me fazia de vez em quando: "Como você diz isso? Como se entrega? Como você fica muito vulnerável?" E minha resposta sempre foi que é o contrário:

A vulnerabilidade não está no que se diz e sim nos segredos que se mantém. Quem vai me chantagear se tudo já for dito?

Quando penso na minha vida, que tem sido uma vida de altos e baixos, acho que cometi muitos erros, mas não cometi nada tão ruim que outras pessoas não tenham feito, que outros não possam se identificar. São erros comuns do fato de ser humana, de ser mulher, de ter vivido no tempo que tive que viver e não agora.

Não me sinto vulnerável. Mas admito que quando minha família viu, quando meu filho e meu marido viram, tiveram momentos envergonhados e também me perguntaram: "Por que você tem que dizer tudo?". Francamente, não sei por quê. Talvez eu seja muito exibicionista. [Risos] Essa pode ser a resposta.