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Mitos da amamentação: 'Falaram que o leite estava fraco. Desisti fácil'

Apesar de os índices de amamentação terem avançado na última década no país, os números continuam abaixo da meta da OMS - Amanda Caroline da Silva/Getty Images
Apesar de os índices de amamentação terem avançado na última década no país, os números continuam abaixo da meta da OMS Imagem: Amanda Caroline da Silva/Getty Images

De Universa, em São Paulo

02/08/2022 04h00

Após o nascimento de seu primeiro filho, a dentista Letícia Gomes, 32 anos, amamentou por apenas 15 dias. Ela tinha muita dor e chegava a ter febre por causa das ínguas e feridas no seio após o desenvolvimento de mastite. "Eu era nova e acabei ouvindo muitos palpites. Quando tive dificuldade por ferir o mamilo, falaram que eu tinha de parar de amamentar, que o leite estava fraco. Acabei desistindo e entrando com a fórmula. Eu tinha 19 anos, não tinha muita informação e desisti fácil."

Enquanto conversava com a reportagem de Universa, seu segundo filho, Loui, estava grudado ao seio da mãe. "Ele é um piercing do peito", brinca ela, que está conseguindo amamentar o bebê sem intercorrências e dores desta vez. "Ele acorda e não desgruda mais", conta Mallê, apelido pelo qual a dentista de Capelinha (MG) é conhecida.

Em breve Loui vai completar dois meses. O que mudou entre uma gestação e outra foi o acesso de Mallê a orientações e informações corretas sobre amamentação. "Na primeira vez acreditei no mito de que o leite havia empedrado. Isso me fez parar de amamentar", conta. "A frustração fez com que as minhas expectativas aumentassem ainda mais na segunda vez. Por isso, fiz cursos, pedi orientação à enfermeira e obstetra e descobri que não é que não tive leite, o que eu não tive foi informação. Não sabia as manobras corretas para solucionar os problemas que apareciam."

O objetivo da mãe é chegar aos seis meses de aleitamento exclusivo e, quem sabe, amamentar até os dois anos de vida de Loui.

Mallê e Lui; a mãe do bebê de dosi meses amamenta sem intercorrências negativas após busca de orientações - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Mallê e Loui; a mãe do bebê de dois meses amamenta sem intercorrências negativas após busca de orientações
Imagem: Acervo pessoal

Apesar de os índices de amamentação terem avançado na última década no país, os números continuam abaixo da meta da OMS (Organização Mundial da Saúde) de, até 2030, atingir 70% de aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses.

De acordo com um levantamento realizado no país em 2019 pelo Enani (Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil), atualmente, no Brasil, o aleitamento exclusivo nos primeiros seis meses abrange 45,8% dos bebês.

A média de amamentação no país é de um ano e quatro meses: 52,1% das crianças são amamentadas até 12 meses e 35,5% até dois anos de idade, segundo o estudo encomendado pelo Ministério da Saúde e coordenado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Nesta Semana Mundial do Aleitamento Materno, recebemos a notícia de que a Academia Americana de Pediatria aumentou a orientação para o período de recomendação para amamentação: agora a instituição recomenda dois anos ou mais se "mutuamente desejado" pelas mães e seus bebês, em vez do período de um ano e meio ou mais indicado na década passada.

Mas a entidade reconheceu também os obstáculos para os cuidadores seguirem a recomendação. "Precisamos de mudanças sociais, como licença remunerada, mais apoio à amamentação em creches públicas, além de creches e apoio no local de trabalho", disse a pediatra Joan Yonger Meek, uma das autoras das novas recomendações.

A consultora de lactação Cris Machado afirma que a falta de orientação e informação é responsável pelos índices estarem aquém do que foi estabelecido pela OMS —a começar pelos profissionais de saúde que não orientam adequadamente sobre o processo de lactação ainda durante o pré-natal.

"Existe uma crença de que a responsabilidade da amamentação é só da mulher, como se só ela devesse saber o que precisa ser feito, quando na verdade falta informação adequada na consulta obstétrica no pré-natal, quando deveria haver avaliação de riscos e orientações gerais sobre o assunto", defende.

"Por incrível que pareça, com exceção dos hospitais amigos da criança, as equipes médicas não têm capacitação em aleitamento, não falam uma mesma linguagem entre si; e as mães de primeira viagem ficam completamente perdidas."

É preciso tirar da conta da lactante a responsabilidade pela amamentação.

Cris Machado, consultora de lactação

A disseminação de informações incorretas, diz Cris, permanece em casa, por pessoas próximas a quem amamenta.

"Um dos principais responsáveis pelo desmame precoce é o uso de chupeta e mamadeira. É comprovado cientificamente que chupetas e mamadeiras alteram a configuração mamar no peito, usam músculos diferentes. Se preparar para amamentação é também falar com as pessoas ao redor para pensar estratégias que envolvam o outro cuidador que não é lactante."

Locais de trabalho precisam apoiar lactantes

A enfermeira obstetra Beatriz Kesselring, mestre em saúde materno-infantil pela USP (Universidade de São Paulo) e diretora do Núcleo Cuidar, lembra também que há falta de efetivação de políticas públicas para garantir que a amamentação ocorra por mais tempo. Por exemplo, no Brasil, a lei determina que empresas com mais de 30 funcionárias mulheres tenham um espaço propício para coleta de leite, as salas de amamentação. Além disso, o país também concede incentivos fiscais para que as empresas estendam a licença maternidade por até seis meses. Só que isso não é visto com frequência, diz Beatriz.

"Existe no contexto público a recomendação de dois anos de amamentação, mas, na prática, estamos muito longe, não temos uma rede de apoio e efetivação no espaço público para incentivar o aleitamento", afirma.

Segundo ela, para além da licença-maternidade, as empresas deveriam contar com salas de amamentação e ter compreensão do momento de vida da mulher com um recém-nascido.

"Vejo muitas mulheres que atendo no pós-parto sendo acionadas pelas empresas para responder e-mails e resolver questões de trabalho quando estão de licença. Existe a preocupação de que o lugar no mercado de trabalho não seja substituído e elas se sentem culpadas. Isso sem falar nas autônomas, que não têm nem essa licença garantida", diz a enfermeira.

"Quando voltam a trabalhar, a maioria das empresas não tem salas de apoio à amamentação, mesmo com contingente grande de trabalhadoras. A implementação dessas salas já foi detalhada pelo ministério da saúde, mas quantas empresas têm essa sala? Elas continuam tirando leite nos banheiros, com dificuldades para armazenar corretamente e entregar para o cuidador do bebê", complementa.

Consultorias especializadas podem ajudar a lidar com dificuldades

As intercorrências que Mallê teve na primeira gestação, diz a enfermeira, são bastante comuns. "Há dificuldade da pega porque, assim como a mãe, o bebê também está aprendendo. Amamentar é um processo de aprendizado para ambos, não é algo que a mulher nem o bebê nascem sabendo, essa é uma visão romantizada. Eles vão levar o primeiro mês para entender esse processo —como é a pega correta, como abrir a boca para pegar a aréola e não apenas o bico do seio, a livre demanda, como lidar com a privação de sono—, mas elas recebem orientações contraditórias", diz Beatriz.

Essa falta de informação pode ser crucial na hora de a mulher prosseguir com sua vontade —seja ela de continuar ou mesmo interromper a amamentação. "Precisamos entender e ouvir qual o desejo da mulher. Uma coisa é falar da recomendação técnica, mas existe também o que cada mulher deseja; se ela não quiser amamentar por muito tempo, ela também não pode ser julgada", diz. "Por outro lado existe uma parcela que quer amamentar, mas por falta de conhecimento faz o desmame antecipadamente."

É o que sente Mallê: "Com a consultoria de amamentação, percebi que mudar a posição do bebê aumentou a produção de leite. Eu tinha medo de não produzir o suficiente e agora percebo que é uma questão de seguir informações. Hoje consigo armazenar no congelador quando produzo uma quantidade maior, faço a ordenha e depois dou para ele com a colher medidora. Isso vai ser importante para quando eu retornar ao trabalho", diz. "Se eu tivesse tido essas informações antes, talvez tivesse conseguido amamentar meu primeiro filho".

Cris lembra que, além dos serviços pagos de consultorias especializadas, os bancos de leite em cada cidade também dão acolhimento e orientação gratuitamente.

"Nosso papel, como consultores, é identificar problemas e pensar estratégias. Ou, às vezes, não é uma questão técnica, mas um apoio para mostrar sinais de uma boa mamada, fazer a mulher se sentir empoderada", diz.

O apoio à amamentação deve ir além da pessoa que amamenta. "O outro cuidador tem que saber que para amamentar, a pessoa tem que ter o resto da vida organizada. Ajudar não é se meter, mas garantir condições de ambiente, por exemplo. A melhor coisa para fazer por ela é um curso de amamentação para companheiros ou fazer a faina ou um feijão. Precisamos tirar o foco só da mulher: quando percebermos que a amamentação é responsabilidade de todos, vamos melhorar muito os nossos indicadores."