Mulheres negras com câncer: 'Direitos precisam ser garantidos'
É difícil uma mulher negra se enxergar em uma campanha de prevenção contra o câncer de mama. Em muitos casos, as pacientes que aparecem sorridentes nos cartazes são brancas e nada parecidas com elas. Há ainda um problema pior: o preconceito que não é escancarado, mas se mostra por trás das atitudes mais simples e, claro, dos mitos.
O racismo estrutural atravessa tudo e, na saúde, não poderia ser diferente. Tem, por exemplo, esses mitos de que mulheres negras aguentam mais dor ou que ficam menos doentes e, aí, nos dão menos medicação. Na verdade, não podemos deixar de trabalhar, então trabalhamos adoecidas.
Carolina Magalhães, criadora do projeto "Se Cuida Preta"
Os reflexos desse descaso são terríveis. Com base em dados do SUS, um estudo da Faculdade de Medicina da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), de 2020, indicou que a sobrevida de mulheres negras em casos de câncer de mama é até 10% menor do que entre as mulheres brancas. Uma das razões seria socioeconômica: segundo levantamento do IBGE de 2019, 70% do público que utilizava o serviço do SUS era composto por mulheres, sendo 60,9% delas pretas ou pardas.
Depois de viver na pele a dificuldade de identificação, a designer e criadora de conteúdo Carolina Magalhães, 35, decidiu contribuir para tornar a informação sobre a doença mais acessível. Autora do livro "Mas nem parece que você tem câncer" (2018), ela é finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Informação para a vida.
A publicação, que já vendeu mais de 400 cópias, é uma espécie de diário onde reuniu conteúdos e informações que ela compartilhou em suas redes sociais. Carolina também impacta outras mulheres por meio do projeto "Se cuida preta", realizado em parceria com as amigas Priscila de Jesus e Renata Lima. Trata-se de um movimento para divulgação de informação e promoção para o autocuidado, para incentivar os exames de prevenção e, se necessário, priorizar o próprio tratamento.
Para isso, Carolina está presente em redes sociais e diversos eventos sobre câncer de mama, colaborando, assim, para que outras mulheres se identifiquem com elas. Certa vez, estava em uma live falando sobre a sua experiência quando uma paciente disse que Carolina havia "salvado a sua vida". "Ela estava muito sem esperança e assistiu a um vídeo meu explicando algumas coisas em uma linguagem descontraída. A seguidora disse que aquilo a havia impactado bastante", conta.
Em qualquer oportunidade que tem, como na entrevista que concedeu ao Prêmio Inspiradoras, faz questão de citar informações úteis. "O câncer de mama descoberto precocemente tem 95% de chances de cura. Se o procedimento demora, ele pode se desenvolver muito rápido. Há a lei dos 60 dias, que diz que o tratamento deve começar até dois meses após o diagnóstico de câncer. As mulheres negras precisam saber das legislações para ter os seus direitos garantidos"
Uma lacuna a ser preenchida
Carolina descobriu que estava com câncer de mama em uma idade considerada jovem, aos 29 anos, em um exame de rotina. "Porque com 20 anos eu tinha sentido um nódulo na mama, só que era um nódulo benigno, um fibradenoma". Inicialmente, ela achou que seria o mesmo tipo de caroço. Fez duas biópsias do novo nódulo e ambas deram inconclusivas. Mesmo sem o resultado definitivo, o médico de Carolina decidiu intervir e fazer a mastectomia total com reconstrução imediata. O diagnóstico de câncer veio apenas depois de três laboratórios investigarem o material recolhido.
Para continuar o tratamento, no entanto, os médicos de Carolina decidiram investigar se o tumor não havia vindo da tireóide, onde eles encontraram um nódulo não-maligno. Porém, dias antes da cirurgia na área, uma surpresa: o médico e o hospital onde ela faria a intervenção foram retirados de seu plano de saúde. A fim de conseguir fazer a cirurgia, a designer precisou entrar na Justiça para obter uma liminar que obrigasse o plano a cobrir os gastos da intervenção.
"A cirurgia da mama foi em abril, a da tireoide aconteceu apenas em agosto", conta. Durante esses quatro meses, ela não fez o tratamento contra o câncer e, em outubro, quando começaria a fazer a radioterapia, foi descoberto um novo nódulo na mama que havia sido reconstruída. Era uma recidiva do câncer.
Ela fez 16 sessões de quimioterapia, conseguiu diminuir o nódulo até ele não ser mais palpável, fez radioterapia e, por fim, a hormonioterapia. Esta última etapa deve ser feita por cinco anos.
Durante o tratamento, a finalista começou a compartilhar a sua experiência nas redes sociais. Sempre de um jeito descontraído e com palavras - e sorrisos - fáceis. Foi por isso que decidiu escrever "Mas nem parece que você tem câncer".
Por conta da publicação, Carolina foi chamada para participar de rodas de conversa e percebeu que mulheres negras a tinham como referência positiva. "O câncer ainda é tabu, imagina seis anos atrás? Havia pouquíssimas mulheres negras falando sobre o assunto. Vi, então, que precisava botar a minha cara de alguma forma para ser essa inspiração para elas."
Porém, mais do que disseminar informações, o projeto "Se cuida, Preta" foi criado em 2019 para trazer histórias diversas de mulheres com câncer. "É muito fácil para mim falar, já que estou curada. Assim, trago histórias de mulheres negras que vivem com câncer metastático ou que tiveram filhos depois do tratamento. São, por assim dizer, casos de sucesso que acabam inspirando outras mulheres que estão passando por tratamento. É um espaço de informação, acolhimento e disseminação de positividade."
Autoestima e acesso à informação
A designer diz que os desafios para discutir sobre o câncer de mama com mulheres negras são diferentes do papo que há com as mulheres brancas. "O cabelo é assunto que sempre surge, mas para a preta ele representa outras coisas. Ela já não se sente bonita com o cabelo natural, então alisa, mas aí precisa raspar e sofre julgamentos. A peruca é bastante importante para a autoestima dela", afirma Carolina Magalhães.
Foi a imagem de Carolina com o turbante que ficou na mente de Priscila de Jesus, companheira na criação de conteúdo no projeto "Se Cuida, Preta". "Li o livro dela e achei marcante, enxerguei a possibilidade de usar o acessório durante o meu tratamento de câncer de mama", afirma. Segundo Priscila, Carol foi a primeira mulher negra que ela viu falando sobre a doença nas redes sociais. "Eu me identifiquei com vários aspectos e fiquei contente em me sentir representada. Assim como eu, acredito que várias mulheres se enxergam na história e na representatividade de Carol."
A conscientização sobre o acompanhamento médico, então, é outra grande barreira. "Quando a gente fala que muita informação não chega nas comunidades, tem quem pense que é conversa, mas é fato", diz a finalista, que acredita haver uma resistência em procurar ajuda médica. "Sempre bato nessa tecla: é preciso fazer o exame regular. Sabemos que, muitas vezes, as mulheres negras precisam trabalhar mais, carregam a responsabilidade sobre a família, mas tem que cuidar de si. Priorizar a própria saúde", diz.
"Essas informações não chegam à população negra por diversos motivos. É importante falar sobre isso de uma forma que todo mundo entenda. Que chegue tanto na mulher negra da comunidade como na que tem plano de saúde, mas não sabe de seus direitos", complementa Carolina.
Assim, quando vê seguidoras marcando-a em stories dizendo que estão indo fazer os exames, Carolina fica muito orgulhosa. "É esse tipo de impacto que procuro". Porém, no momento, a designer está focada em outro projeto: ela parou a hormonioterapia para ter um filho com sua mulher, com quem está há 12 anos. Atualmente, está grávida de sete meses. "Sempre quis ter barriga. Achei que essa não era uma possibilidade, mas os meus testes estavam dentro da normalidade e minha médica liberou."
Quando contou a novidade nas redes sociais, a mesma seguidora que disse que ela a havia salvado, comemorou. "Ela disse que é uma esperança, porque também quer ter filhos." Guilherme vai nascer em outubro, no mês da prevenção do câncer de mama. "Vai ser um período com muita informação".
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, basta consultar o Regulamento.
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