Ida à Bahia inspirou autora americana a criar bestseller: 'Deuses negros'
Tomi Adeyemi é uma granada de ideias. É impossível não se sentir dessa maneira depois de passar uma hora ao seu lado. A autora nigeriana-americana tem apenas 24 anos, mas o seu primeiro livro, "Filhos de sangue e osso" (Rocco), já tem um contrato fechado com a Paramount para se tornar um filme - e as gravações devem começar em breve. E o mais interessante? A inspiração da história surgiu após uma viagem ao Brasil, que ela fez há sete anos, quando conheceu os Orixás.
"Essa série de livros não existiria sem o Brasil. Tudo começou em uma loja de lembrancinhas na Bahia. Eu estava dentro da loja evitando molhar meu cabelo por causa da chuva forte e vi as figuras dos Orixás de cerâmica. Não sabia o que eles eram, mas me inspirou muito. Eles pareciam deuses africanos e, na minha imaginação, essa possibilidade nem existia", disse em entrevista ao Universa em sua passagem pelo Brasil. Segundo ela, foram as figuras que fizeram uma explosão galáctica de imaginação em sua cabeça.
Formada em literatura inglesa por Harvard, a viagem foi um prêmio de graduação que ela recebeu na universidade. Ela podia escolher um local no mundo onde a viagem poderia estar relacionada ao seu estudo. Uma mulher negra com convicções claras de racismo e orgulho de sua raça, ela optou por Salvador, para conhecer o Museu Cultural Afro Brasileiro. "Salvador tem a maior população de nigerianos fora da Nigéria. Eu me misturava, só conseguiam saber que eu era estrangeira quando falavam comigo", conta.
A viagem durou apenas 10 dias, mas foi determinante para a carreira de escritora de Tomi - e ela sabe disso. Para elas, o encontro com Salvador foi como achar um tesouro perdido no próprio quintal, mesmo que ela tenha precisado viajar para isso.
"O Brasil e os Estados Unidos têm paralelos interessantes sobre a escravidão. Vocês receberam 10 vezes mais escravos que os EUA, mas lidaram com a mistura das raças de forma diferente. A segregação nos Estados Unidos criou uma identificação afro-americana muito forte na população. Lá, se você tem um ancestral negro uma gota de sague, já é considerada uma pessoa preta. Aqui, isso não é tão forte. Mas ambos os países têm a brutalidade policial e o racismo estrutural", conta Tomi.
Racismo na imaginação
Os livros de Tomi foram muito premiados. O primeiro da trilogia foi escolhido como "Livro do Ano" da Amazon, venceu o Prêmio Nebula de 2018, na categoria Prêmio Andre Norton de Excelência para Livro de Fantasia ou Ficção Científica Jovem-Adulto, e o Prêmio Hugo de 2019, na categoria Prêmio Lodestar de Melhor livro Jovem Adulto, além de ficar 50 semanas na lista dos mais vendidos do jornal americano New York Times. Mas criar personagens negras não foi algo que aconteceu naturalmente. Por causa do racismo estrutural, e a ausência de mulheres negras no entretenimento, Tomi disse que não conseguia nem criar personagens semelhantes a ela.
"Eu sei o quanto é importante ter uma menina preta na capa do livro. Eu me apaguei da minha imaginação por 10 anos. Nas minhas histórias, meus personagens eram brancos ou birraciais. Eu internalizei que não podia existir alguém como eu até na minha imaginação, porque nunca me vi na dos outros. Tudo o que vemos nos afeta", diz. Por escrever apenas para si mesma, a autora fala que ninguém nunca a alertou sobre isso.
"Não existiam personagens de mulheres pretas para me inspirar quando eu era criança, por isso escrevi sem que eu mesma estivesse presente. É muito triste. Escrever me dá evidências do meu subconsciente e essa foi minha primeira guerra", conta.
Ela busca, com suas histórias que são focadas no público adolescente, trazer conforto em tempos difíceis. "O livro é para ser um lugar seguro. E é o que eu quero criar com os meus. E dar um lugar de saída, um escape, principalmente agora nesse momento que estamos vivendo", diz.
Determinação é o seu forte
Fã de Anitta, por enxergá-la como uma inspiração e uma grande empreendedora, e de Harry Potter, por ter as grandes batalhas da história como referência, Tomi é uma mulher muito determinada. E questionada se isso é sobre sua personalidade ou por ser uma mulher preta na indústria, ela ressalta que o que mais ama sobre ela é a sua raiva, pois ela é determinante para a sua luta. Assim, como "não haveria Anitta sem suas dores", como ela diz.
"Estou sempre com raiva. Sempre fui assim. Quanto mais alto eu chego, mais razões tenho para me sentir assim. Quanto mais trabalho, mais percebo que ainda há muito a se fazer. Eu estou no meio da indústria, nas salas com os maiores produtores e pessoas bem-sucedidas de Hollywood. Vejo em tempo real como eu sou apagada das histórias, se é que isso faz sentido", diz Tomi. Segundo ela, agora que entrou nesse mundo cinematográfico e ela está entendendo de perto como a mulher preta é vista na hora de ser incluída.
"Esse sistema garante que pessoas como eu não estejam nem nos filmes e nem nos livros. Garante que tenhamos apenas uma Viola Davis e apenas uma Octavia Spencer. Me sinto pessoalmente ofendida por esses criadores de conteúdo, que quando pensam no mundo, colocam a mulher negra de forma caricata, enquanto as brancas têm personagens complexos", explica.
Apesar de ter uma visão clara de como a indústria funciona, ela está muito feliz que seus livros vão ganhar as telonas. "Tem uma fala no documentário da Netflix da Anitta que diz que ela saiu do Brasil para ganhar o mundo. É assim que me sinto. É insano viver tudo isso. Meus livros não teriam nascido se eu não tivesse viajado para cá há sete anos. Me deixa emocionada voltar para o país enquanto escrevo o terceiro livro e trabalho no script do filme, que começa a ser filmado na metade de 2023", diz. Além de roteirista ela também é diretora executiva da produção.
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