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Mulheres com deficiência falam de autoestima: 'Hoje acho meu corpo bonito'

Maria Paula Vieira é modelo e fotógrafa e faz um trabalho para ajudar mulheres se livrarem de padrões estéticos - Thaís Marin
Maria Paula Vieira é modelo e fotógrafa e faz um trabalho para ajudar mulheres se livrarem de padrões estéticos Imagem: Thaís Marin

Manuela Aquino

Colaboração para Universa

13/08/2022 04h00

Depois de uma semana em coma após um grave acidente de carro que resultou na amputação de seu braço, Kareemi se olhou no espelho pela primeira vez. E o que reparou não foram as cicatrizes, estar sem o braço ou muito magra: "Minhas sobrancelhas estavam peludas e sem fazer. Pedi uma pinça para minha prima porque eu ia receber visitas. Ali percebi como somos vidradas nos padrões", conta palestrante e educadora, hoje com 41 anos. Ela conta que antes do acidente já estava em um processo de auto descobrimento de que "a vida é muito mais que um corpo, sua forma". Mas isso não quer dizer que foi simples. "Precisei me adaptar para ver beleza em mim", conta, em entrevista a Universa.

A busca pela autoestima passa por muitas questões e a principal delas é a aparência. Embora não sejamos somente o físico, temos essa cobrança, e lutar contra isso é um dos caminhos do amor-próprio. Assim como Kareemi, outras mulheres com deficiência têm um desafio a mais nessa busca pela aceitação corporal. Enfrentam, além da pressão vinda padrões estéticos, o capacitismo, que é o preconceito contra a pessoa com deficiência.

Para entender como se faz a jornada da autoestima estando em um corpo diverso e visto ainda com preconceito, conversamos com quatro mulheres com deficiência. E cada uma trilhou seu caminho e ainda trilha pois, para todas, a autoestima é uma construção diária.

"Hoje olho para meu corpo e acho bonito"

"Tenho doença genética ainda não diagnosticada percebida desde os três anos. Tenho atrofia nas mãos e pés e questões dermatológicas. Já usei órtese nas pernas, andador e desde os 14 anos, ando de cadeira de rodas.

A fase mais complicada para mim foi na adolescência, mudei de escola no ensino médio e sofri muito bullying. As meninas me comparavam com elas na minha frente e criticavam minhas pernas finas. Ninguém ficava comigo no intervalo, era bem isolada. Eu tinha todo apoio da minha mãe que sempre reforçava sobre minha beleza e capacidade. Pegou muito pra mim a questão da solidão da pessoa com deficiência, nunca recebi uma cartinha ou fui ao cinema com um menino da sala.

Maria Paula Vieira, 29 anos, jornalista, modelo e fotógrafa, de São Paulo  - Thais Marin - Thais Marin
Maria Paula Vieira faz parte de um projeto que fotográfa mulheres e as ajuda a quebrar padrões estéticos
Imagem: Thais Marin

Quando entrei passei na faculdade de jornalismo, aos 18 anos, tudo começou a mudar pois eu fazia parte, tinha amigos, que são próximos até hoje. Há dois anos eu namoro, já tive outros relacionamentos, mas foi nesta época mesmo de festas universitárias que passei a me sentir amada e querida. Nesta época fui convidada por uma fotógrafa para fazer um ensaio e me ver pelo olhar de outra pessoa daquela maneira tão linda mudou muito dentro de mim. Anos depois virei modelo e também fotógrafa de mulheres as que tento ajudar a se livrarem de padrões estéticos.

Meu corpo sempre foi político, sair na rua de cadeira de rodas já é ativismo. Construir a autoestima não é algo de um dia para outro, nem linear, pois há dias em que vou gostar de mim e em outros não.

Aos 21 anos, passei a compartilhar meus sentimentos e minha rotina como mulher com deficiência no Instagram e já participava de grupos e projetos de conscientização. Quando mais nova, seria muito bom ter tido alguém para me representar, falar de autoestima e capacitismo.

Hoje, olho para meu corpo e acho bonito, gosto das minhas pernas, consigo postar uma foto mostrando como elas são, mais finas, e não tenho mais a vergonha que tinha na adolescência." - Maria Paula Vieira, 29 anos, jornalista, modelo e fotógrafa, de São Paulo (SP)

"Meu corpo é motivo de orgulho"

Kareemi - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Kareemi perdeu o braço após um acidente de ônibus e hoje dá palestras motivacionais
Imagem: Arquivo pessoal

"Em 28 de dezembro de 2011 eu estava indo para Florianópolis passar o ano novo. Fui em um ônibus de dois andares que perdeu o controle na Rodovia Régis Bittencourt e sofremos um acidente que resultou em quatro vítimas fatais e vários feridos. Eu fui a sobrevivente em estado mais grave. Tive muitos traumas, passei por muitas cirurgias.

Precisei amputar meu braço, fazer uma cirurgia na cabeça e raspar o cabelo. Muito cortes, feridas no rosto. Comecei a usar lenços, chapéus e a usar maquiagem. Estava muito grata por estar viva, era uma sobrevivente. Não tive negação com meu novo corpo, minha nova forma.

O processo de luto, de aceitação foi pequeno pois já tinha essa visão que facilitou a adaptação ao novo corpo. Claro que passei por processos dolorosos. Mas minhas sobrancelhas estavam peludas e sem fazer e eu ia receber visitas. Percebi como somos vidradas nos padrões. Mas ao mesmo tempo, pedi para uma prima levar a pinça para mim pois queria mesmo naquela forma 'estranha' na qual estava me adaptando para ver beleza em mim.

Antes disso, vale dizer, que eu já tinha um caminho de busca espiritual e eu já tinha consciência de que a vida é muito mais que um corpo, sua forma. Três meses antes do acidente eu estava em busca de uma nova jornada de mudança e pedindo pro universo para fazer a diferença. E diante de um acidente tão grave que poderia comprometer algum órgão vital meu, eu pensei que meu caminho era comunicar a vida. Aí, decidi fazer palestras para contar minha história.

Um ano depois da amputação, tive algumas infecções. Doei todas minhas blusas cavadas e com alça pois não queria que as pessoas vissem aquilo, eram muitas secreções. Eu achava que nunca mais iria deixar meu coto aparente. Depois que passou.

O fato de não ter braço me levou para tantos lugares, me deixou perto de tantas mulheres, que acabou sendo motivo de orgulho para mim.

Esta amputação é um chamariz para que as pessoas vejam que existe vida após uma tragédia dessas. Não é um discurso, é algo que vivo na prática, ter uma parte do corpo tão aparente que falta, é um serviço político." - Kareemi, 41 anos, palestrante e educadora menstrual, Sorocaba (SP)

"Se olhar com carinho é o primeiro passo"

Vanessa Oliveira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Vanessa Oliveira
Imagem: Arquivo pessoal

"Não tenho um laudo para dizer o termo técnico do que tenho, mas eu não tenho força muscular suficiente para conseguir andar e também tenho escoliose. Nunca tive problema em ser uma pessoa com deficiência. Eu acho que as pessoas tinham mais problemas quanto a isso do que eu. Minha infância foi igual a de qualquer criança sem deficiência.

Quando eu era ainda criança eu conseguia 'andar' segurando em móveis e nas paredes, mas com o passar dos anos eu perdi essa mobilidade. Eu tinha algumas obrigações como fazer fisioterapia, fono, mas fora isso a minha infância foi muito boa.

A adolescência foi um pouco mais difícil, mas também por questões externas, acho que este período não é muito fácil pra ninguém, e quando se é pcd e lésbica fica tudo mais confuso. Era a única pessoa com deficiência da minha escola, logo de início as pessoas não queriam se aproximar de mim, era como se elas tivessem medo de mim...

Com o tempo elas começaram a 'fazer contato' mas digo isso entre muitas aspas, porque em anos na mesma escola eu tive uma única amiga, que inclusive é minha amiga até hoje e que me ajuda demais com as redes sociais.

Esse processo de cuidar e cultivar a autoestima se dá até hoje dentro de mim, acho que a autoestima precisa de uma manutenção constante. O incômodo sempre vai existir, mesmo que pequeno.

Tem dias que eu acordo e me vejo linda, tem dias que vejo mil defeitos em mim e às vezes chego a acreditar nos defeitos que impõem ao meu corpo. Acho que a sociedade nos faz acreditar nessas coisas, né? Acho que se olhar com carinho é o primeiro passo, tirar a ideia de padrão da cabeça. Considero um bom início.

O preconceito é algo constante na minha vida. Sou lésbica e sempre acham que minha esposa é minha cuidadora, como se pessoas com deficiência não pudessem se relacionar.

Quando descobrem que somos um casal, começa o olhar de reprovação. Mas hoje em dia a gente consegue lidar melhor com isso, antes ficávamos bem mal, hoje em dia só sinto muito pela pessoa ser tão infeliz ao ponto de se incomodar com a vida alheia.

Amem seus corpos, não existe nada mais potente que isso! Acho inclusive que foi isso que me trouxe até aqui, falar sobre meu corpo, falar sobre minha deficiência, e isso deu uma força gigante pra mim." - Vanessa de Oliveira, 34 anos, criadora de conteúdo, Maceió (AL)

"Trabalhar a sexualidade é fundamental pra autoestima"

mona - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mona
Imagem: Arquivo pessoal

"Atuo como atriz, dançarina e faço palestras pela causa das mulheres com deficiência. Não nasci uma pessoa com deficiência, a minha foi adquirida. Quando tinha 30 anos. Trabalhava como técnica de enfermagem, e comecei a ter uma dor de cabeça forte. Na época foi diagnosticado como um pseudotumor.

Depois de um tempo precisei fazer um implante de catéter na coluna para tirar a pressão craniana e fui melhorando. Em 2007, tive problemas num centro cirúrgico e fiquei sem mexer os membros inferiores. Melhorei mas dois anos depois tive um surto e fiquei sem mover as pernas e os braços. Imagine, eu, mãe solo. Me preocupava em como cuidar do meu filho, Adetalio, hoje com 28 anos.

Somente em 2014 recebi o diagnóstico de Síndrome Neuromielite Óptica. Quando você sabe o que tem que combater, passa a ser um alívio.

Para mim, como mulher negra ser uma pessoa com deficiência só foi a cereja do bolo. Em 2010, já usando cadeira de rodas descobri a dança pcd e vi que não era a única, o que foi muito bom para minha autoestima.

Nesta fase em que passei a não mover os membros inferiores tive uma preocupação com a sexualidade, sem gostei muito de sexo e masturbação nunca foi um tabu. Mas quando perdi toda sensibilidade, a coisa pegou, pois sentia falta de sexo. Me falaram que eu não ia ter mais orgasmo, e sozinha comecei a me tocar pois não queria aquilo.

Acredito que a sexualidade é uma questão de saúde pública. É fundamental para construção da autoestima e não conheço nenhum pcd que não tenha tentado e conseguido." - Mona Rikumbi, 51 anos, ativista, São Paulo (SP)