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Japonesa Akiko Fujita é mestre de saquê em um universo dominado por homens

A mestre de saquê japonesa Akiko Fujita, 42 anos - Divulgação
A mestre de saquê japonesa Akiko Fujita, 42 anos Imagem: Divulgação

Roberto Maxwell

Colaboração para Universa, de Tóquio

14/08/2022 04h00

O dia começa cedo na Yoshimura Hideo, uma fábrica de saquê na província de Wakayama, no oeste do Japão. Pouco antes das sete, uma fumaça branca escapa intermitentemente da chaminé anunciando que o arroz que será usado na produção do dia está quase pronto. No entorno da gigantesca panela de pressão onde o cereal é cozido no vapor, três homens com idades entre 30 e 50 anos esperam o momento exato da abertura do equipamento. O tempo é crucial na produção do saquê.

Com a panela aberta, o arroz é retirado e colocado numa esteira para resfriar. No alto dela, Akiko Fujita se debruça sobre a máquina, checa a temperatura do cereal e confere sua textura. É um trabalho técnico e, ao mesmo tempo, intuitivo que garante a qualidade do que vai para as garrafas que fizeram o seu nome como uma das mais destacadas toji —mestres de saquê— desta geração. Aos 42 anos, Fujita está na posição que galgou após anos de estudos e trabalho árduo.

"Sou nascida e criada em Tóquio. Então, não tinha nem ideia do que era uma fábrica de saquê até entrar na universidade", conta a toji a Universa. Apesar de ser a maior província consumidora da tradicional bebida japonesa, Tóquio tem apenas nove sakaguras —fábricas de saquê— ativas. No país todo são cerca de 1.200, boa parte delas no interior.

Graduada em biologia pela Universidade de Estudos Agrícolas de Tóquio, o maior celeiro de talentos e desenvolvimento de tecnologias agrárias do país, Fujita conta que, na época de estudante, queria trabalhar com a produção de algum tipo de fermentado. "Vinho, cerveja, saquê, missô, shoyu: eram várias as opções", relembra ela. No entanto, uma visita a uma fábrica de saquê durante as férias de inverno iria tomar a decisão por ela.

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Yoshimura Hideo, fábrica de saquê na província de Wakayama, no oeste do Japão
Imagem: Divulgação

"Uma colega de sala era filha de um produtor de saquê da província de Yamagata [norte do Japão]", recorda. "Fomos em grupo conhecer a fábrica e tivemos a oportunidade de ajudar na produção", prossegue. A vivência foi cheia de descobertas e estímulos para Fujita. "Era fevereiro e fazia muito frio. Entrei na fábrica e senti um aroma bom que eu nunca tinha sentido", continua ela, com um sorriso no rosto, como se estivesse revivendo aquele momento.

"Meu coração bateu forte", conta, antes de uma gargalhada. Fujita tinha sido conquistada. "Foi naquele momento, naquele lugar tão maravilhoso, que decidi trabalhar com saquê", diz.

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Produção de saquê na fábrica
Imagem: Divulgação

Métodos naturais

Em seus estudos sobre o saquê, Fujita descobriu que algumas fábricas do país estavam resgatando formas tradicionais de produção que a interessavam. Uma delas é o yamahai, na qual a cultura de leveduras usadas para transformar o amido do arroz em açúcar é feita sem a adição de ácido lático, o qual é utilizado para criar um ambiente saudável que permita o crescimento das leveduras e a eliminação de micro-organismos indesejados.

Por exigir muito mais habilidade da equipe de produção porque as reações químicas são feitas de forma natural, é um método dominado com maestria por poucas pessoas no país.

Encantada com a forma natural de produção, foi atrás de Naohiko Noguchi, codinome "deus do saquê", uma lenda na produção do fermentado japonês. Noguchi a aceitou como discípula e foi com ele que ela aprendeu a dominar o yamahai.

Fujita é uma das mais ardorosas defensoras deste método tradicional de produção no Japão. Com ele, o saquê já saía da primeira prensa com um sabor bem definido, qualificado por muitos como selvagem. São saquês que correspondem a uma pequeníssima parcela da produção, mas que contam com boa aceitação no mercado, em especial entre os conhecedores da bebida.

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Akiko Fujita: 'Para mim, trabalhar fora sempre me pareceu algo legal'
Imagem: Divulgação

A toji explica que já produziu saquês com o mesmo tipo de arroz, polido nas mesmas condições, usando tanto o método mais comum quanto o yamahai. "Qual dos métodos produz o saquê mais cristalino e mais saboroso? Qual deles me emociona mais? Sem dúvidas, o yamahai", afirma ela.

Um mundo masculino

A carreira para mulheres no universo do saquê não é fácil. De um modo geral, a maioria delas trabalha em atividades de escritório ou de promoção da bebida. O chão da fábrica é dominado pelos homens. Por isso, é raríssimo encontrar mulheres na posição de toji, que Fujita ocupa há 13 anos na Yoshimura Hideo. Os dados não são muito precisos, mas estima-se que elas sejam apenas 50 no universo das mais de 1.200 fábricas do país.

A mestre conta que, antes de assumir a posição atual, chegou a trabalhar em outras sakaguras e sempre encontrou mulheres. "Elas trabalhavam duro", relembra. "Mas, num dado momento, acabavam saindo por causa do casamento. Achava uma pena porque elas tinham se esforçado tanto para estar ali, estavam prontas para trabalhar e tiveram de sair", prossegue ela, revelando um dos principais desafios do Japão com relação às mulheres: a manutenção delas no mercado de trabalho. Faltam creches e, principalmente, apoio àquelas que gostariam de dar seguimentos às suas carreiras.

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Saquê produzido na fábrica japonesa Yoshimura Hideo
Imagem: Divulgação

Para Fujita, no entanto, não seguir pelo mesmo caminho foi uma questão de exemplo. "Minha mãe é pesquisadora, eu a via viajar pelo mundo para participar de congressos. Para mim, trabalhar fora sempre me pareceu algo legal", conta, acrescentando que nunca sofreu discriminação nas fábricas de saquê. "Tive sorte", explica. "Já ouvi histórias de mulheres que, por exemplo, não recebiam tarefas importantes por serem mulheres."

Fujita diz que seu principal objetivo é produzir "ano após ano" um saquê cada vez mais gostoso. "E aí, quem sabe daqui a 25 anos, eu venha a ouvir alguém me dizer que bebeu o saquê que eu produzi e o achou gostoso", arremata. Talvez não precise tanto. Alguns dos rótulos desenvolvidos por ela são distribuídos em todo o Japão. Mais recentemente, essas garrafas começaram a chegar ao exterior, onde estão ao alcance dos consumidores nos Estados Unidos, na Europa e até no Brasil. Não é improvável que, antes disso, os elogios pela qualidade dos produtos atravessem o mundo e cheguem até as montanhas de Wakayama e aos ouvidos de Fujita.