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'Mandou calar a boca': mulheres relatam humilhação de juiz em audiências

O juiz Rodrigo de Azevedo Costa - Reprodução
O juiz Rodrigo de Azevedo Costa Imagem: Reprodução

De Universa, em São Paulo

18/08/2022 04h00

A sessão do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) que decidiu pela pena de remoção compulsória do juiz Rodrigo de Azevedo Costa —na prática, ele será apenas transferido de cidade— causou revolta entre as mulheres que foram maltratadas em audiências da Vara de Família pelo juiz. Elas acompanharam o julgamento online na quarta-feira (17).

Em 2020, conforme revelado por reportagens no site Papo de Mãe, parceiro do UOL, o juiz Rodrigo de Azevedo Costa desdenhou da Lei Maria da Penha, dizendo em uma audiência: "se tem Lei Maria da Penha, eu não tô nem aí". Em pelo menos três audiências online, o juiz questionou mulheres de maneira irônica, entre elas vítimas de violência doméstica. Todas foram gravadas na íntegra e duraram entre três e quatro horas, e a reportagem teve acesso a elas.

Entre o que podem ser consideradas agressões psicológicas e emocionais, ele chegou a dizer que tirava a guarda da mãe que pedisse medida protetiva contra agressor. Em outra, sugeria que a mulher procurasse tratamento psicológico e, em uma terceira, sugeriu a outra mãe que desse as filhas para adoção porque ela era pobre.

A pena de remoção compulsória determina que o juiz seja transferido de comarca: ele deixará de atuar na cidade de São Paulo. Todos os desembargadores presentes na sessão especial votaram contra o relator do caso, desembargador Xavier de Aquino, que tinha indicado uma pena mais grave, de disponibilidade, que é o afastamento temporário do cargo. Existiria ainda uma outra pena máxima, de aposentadoria compulsória, mas essa não foi cogitada.

Para Twane Hopner, advogada de duas das três mulheres que estiveram nas audiências e foram maltratadas, "a remoção compulsória não é uma punição branda, porém, acredito que, nesse caso, a punição deveria ser mais severa, tendo em vista os danos que foram causados às vítimas. São mulheres que se viram feridas em sua dignidade e até hoje, quase dois anos após os fatos, não conseguiram superar o que lhes aconteceu", diz.

"As mulheres dessas três audiências não foram as únicas vítimas, havia outras, contudo não tinham a gravação das falas e não poderiam provar o que diziam. Eu, sinceramente, espero que esse magistrado tenha evoluído e que não faça novas vítimas." As audiências de 2020 foram gravadas porque eram feitas online, em razão do isolamento social provocado pela pandemia.

Uma das clientes de Twane é Bruna Cesar, enfermeira, que, em conversa com Universa, manda um recado ao juiz Rodrigo de Azevedo Costa.

"Eu estava na audiência em que o senhor me manda calar a boca, doar minhas filhas, e diz que sou uma 'moça bonita' que em breve 'arrumaria' outro rapaz, e o 'trouxa', como o senhor chamou o genitor das minhas filhas, continuaria pagando pensão. Por diversas vezes, expliquei que nossa guarda era compartilhada, mas em toda a audiência fui massacrada inclusive com as palavras de que 'os ônus da guarda eram meus'", diz.

"O resultado de tal imprudência foi um genitor ainda mais ausente e que, por diversas vezes, reutiliza suas falas para se livrar das obrigações já estabelecidas em juízo. Me fez ter medo até de me posicionar em determinadas situações, pois tinha medo de alguém mandar eu calar a boca porque, segundo o senhor, eu não tinha estudo para isso. Gostaria de deixar claro que tomei diversos ansiolíticos após aquela audiência, onde eu tinha provas e mais provas contra o genitor, que saiu ileso."

Indignação com impunidade e corporativistmo do Judiciário

A outra cliente da advogada Twane Hopner é Fabiana Campos, autônoma. Ela disse que recebeu a notícia "com indignação diante de todo trauma e prejuízo material causado a mim por esse juiz".

"Ouvi barbaridades ditas por ele durante a audiência em relação a minha pessoa e fui obrigada a fazer um acordo para não ter meu processo engavetado foi a resposta que tive do Judiciário."

"Esse preconceito e humilhação ele aplicou não somente a mim, mas também a outras mulheres que procuram a Justiça para terem seus direitos assegurados e, como punição, ele foi apenas transferido de comarca. Com isso, não teremos assegurado que tais fatos cometido por esse juiz não se repitam com outras mulheres em outras localidades, ou seja, resta a indignação da impunidade e do corporativismo."

A defesa de Rodrigo alega que juiz atravessava um momento psiquiátrico difícil, apresentando sintomas da síndrome de burnout, o esgotamento provocado por carga excessiva de trabalho (leia mais ao final do texto). 'Mas a doença só se manifestava contra mulheres', diz a advogada Gabriella Nicaretta, que estava na audiência em que Rodrigo de Azevedo Costa desdenhou da Lei Maria da Penha e foi, ela mesma, calada por ele diversas vezes.

Para ela, o juiz foi machista e racista e a decisão do TJSP foi uma decepção. Entre outros argumentos de defesa, os desembargadores alegaram que ele errou em apenas três audiências. "Três audiências que conseguiram gravar, sem contar anteriores que nunca foram gravadas", diz Gabriella.

"Saí destruída da audiência", diz mulher que teve guarda dos filhos ameaçada

Fernanda Hernandez, consultora de viagens, participou de uma audiência comandada por Rodrigo, para decidir sobre pensão das filhas. Ela foi vítima de violência doméstica e tinha medida protetiva contra o ex-marido. Para Fernanda, a decisão abre uma brecha para que essas agressões continuem acontecendo. "Podia ter sido um exemplo, mas não foi", diz. Ela enviou a Universa a mensagem abaixo:

"Só eu sei como saí destruída daquela audiência, meu emocional até hoje não superou tudo que ouvi e a maneira como fui tratada. Um juiz que fala, na presença do agressor, que 'se ele bateu é porque teve motivo' e que 'tudo agora vira lei Maria da Penha', 'tudo é medida protetiva', ameaça retirar a guarda dos filhos caso ela volte a denunciar, tira a segurança de qualquer mulher que sofreu ou sofre violência e a desencoraja a denunciar", diz.

"Apenas remover esse juiz de comarca é um exemplo de que não há punição à altura do ato cometido. Se um juiz não está bem psicologicamente, não deveria estar lá. Os atos cometidos foram muito graves. E a violência que nós sofremos? E as barbáries ditas, as decisões judiciais em cima disso? Parece que todos têm direito a uma nova chance, menos as vítimas" Fernanda Hernandez, consultora de viagens, ofendida pelo juiz Rodrigo de Azevedo Costa durante audiência.

Veja a repercussão da decisão do TJ-SP entre especialistas

"Em São Paulo, pelo que tenho conhecimento, é a primeira vez que um magistrado é condenado por violação que tem na raiz a violência de gênero. Creio que o caso, que veio a público e com luz jogada pela imprensa, o que certamente fez diferença, deve ser um alerta para que os tribunais e as escolas da magistratura tratem do tema da violência contra as mulheres em seus vários aspectos, especialmente o praticado pelos seus membros. Uma punição por essa causa deveria estar acompanhada de ao menos uma capacitação sobre gênero e direitos humanos."

Kenarik Boujikian, desembargadora aposentada do TJ-SP

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"A decisão da maioria do órgão menosprezou o sofrimento das vítimas, foi como se as práticas denunciadas fossem mero lapso, até por problemas pessoais que o juiz passava. Há várias lacunas: poderia se aplicar essa sanção ou a mais grave mas, junto delas, agregar medidas previstas na Lei Maria da Penha, como participar de grupos reflexivos, antes de voltar ao ofício."

Arnobio Rocha, advogado civilista, coordenador da Comissão de Direitos Humanos do Sindicato dos Advogados de São Paulo

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"Muito mais do que a remoção compulsória, diante deste contexto, o que nos preocupa é a prevalência da violência institucional sob um olhar e uma prática de 'Justiça' que insiste em privilegiar as práticas corporativas que operam a favor do fortalecimento da cultura do patriarcado e da manutenção da desigualdade de gênero, e que insiste em interromper qualquer processo que priorize a equidade e a valorização da mulher."

Regina Célia Barbosa, vice-presidente do Instituto Maria da Penha

O que diz a defesa

Procurado por Universa, o advogado de defesa do juiz Rodrigo de Azevedo Costa, Pedro Giberti, disse, por telefone, que foi a decisão do tribunal foi a que ele esperava: "Não faria sentido colocar o juiz em disponibilidade [afastamento] porque, embora as condutas nas três audiências tenham sido reprováveis, ele estava doente. Há um laudo psiquiátrico no processo, um médico nomeado pelo TJ viu os três vídeos na íntegra, teve oportunidade de avaliar o comportamento dele durante os surtos, e produziu um laudo dizendo que ele estava com a síndrome de burnout por esgotamento, além de alteração psiquiátrica que foram determinantes do comportamento dele."

Ainda segundo o advogado, ele estaria doente. "Eu expliquei isso para o tribunal, que entendeu. E entendeu que ele já foi punido, o que fizeram com ele foi de uma maldade sem precedentes. Ele se submeteu a tratamento psiquiátrico e passou a fazer terapia, que faz até hoje. Resolveram dar ao juiz o direito de recomeçar sua vida profissional."

Pedro Giberti diz que Rodrigo "está muito arrependido" e que "lamentava muito ter causado maus sentimentos para as pessoas." Ainda segundo o advogado, os vídeos das reportagens teriam sofrido "edição prejudicial", fato contestado pelos próprios desembargadores presentes na sessão desta quarta-feira, e em outras que trataram do caso. Todos tiveram acesso a todas as audiências originais e na íntegra e constataram a gravidade, dizendo, inclusive, que as audiências completas são muito piores do que os pequenos trechos divulgados.

A reportagem ressalta que os vídeos nunca foram editados, apenas foram destacados alguns trechos, já que eram audiências de até quatro horas.

*Colaborou Camila Brandalise