'Precisamos derrotar Bolsonaro', diz jovem destaque na luta por democracia
"Se antes as universidades eram para poucos, hoje, novos rostos, cores e saberes diversificam os espaços de poder político do Brasil. Nós, que éramos os outros, agora fazemos parte desta nova carta. Somos jovens, negros, periféricos, uma nova intelectualidade que é fruto da escola pública, das quebradas e das favelas."
Quem ouviu esse trecho do discurso da estudante de direito Manuela Morais, presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto, da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), durante o ato de leitura da carta pela democracia, na quinta-feira (11), não imagina que a jovem de 19 anos mal dormiu na noite anterior: ela ensaiou a fala diversas vezes, e o nervosismo só passou na hora, à medida que ela ouvia mais e mais aplausos das 7.600 mil pessoas presentes no ato —entre elas, a repórter que escreve esta reportagem.
"Quando vi todas aquelas cabecinhas, fiquei anestesiada. Pensei: 'Não posso travar'. Comecei a falar e começaram a aplaudir, isso foi me dando mais confiança e determinação", contou, em entrevista a Universa, por telefone, três dias após o evento. A carta pela democracia, lida após o discurso de Manuela, já foi assinada por mais de 1 milhão de pessoas.
Daqui até as eleições, em outubro (e novembro, caso haja segundo turno) Manuela acredita que o papel do movimento estudantil é se manter nas ruas: "Precisamos derrotar Jair Bolsonaro [PL] nas urnas. Mas não adianta ficarmos só dentro das universidades. Os maiores marcos de conquista de direitos aconteceram nas ruas, a partir da união dos estudantes, da juventude e dos trabalhadores".
Negra e vinda do ensino público
O trecho citado no início do texto resume a trajetória de Manuela —jovem negra vinda do ensino público, a segunda mulher a presidir o Centro Acadêmico XI de Agosto—, e de muitos outros estudantes que começaram a chegar à USP desde 2018, quando a maior universidade pública da América Latina incorporou as cotas.
"Acho que essa parte do discurso causou comoção especial justamente por reconhecer que agora estamos aqui, fazendo parte desse momento histórico. Somos alunos pretos, pobres e, apesar de tudo, de todos os obstáculos, estamos aqui. E ficaremos aqui".
No discurso, escrito por Manuela e outros três membros da atual gestão do Centro Acadêmico XI de Agosto, mas submetida aos cerca de 40 integrantes da chapa, Manuela também criticou os cortes bilionários nos recursos da educação e o governo do presidente Jair Bolsonaro e exaltou o papel da juventude na política.
"A USP é hostil. É difícil se sentir pertencente"
Manuela estudou a vida toda em escolas públicas e fez o Ensino Médio em uma ETEC (Escola Técnica Estadual) de Araraquara, cidade do interior paulista a 294 km da capital.
Depois de cursar o último ano à distância em razão da pandemia de coronavírus e estudar para o vestibular —bastante concorrido, aliás— com a ajuda de um cursinho popular também on-line, ela foi aprovada na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.
Filha de uma diarista e um economista —de esquerda, que começou a "plantar a sementinha" do interesse dela pela política— Manuela era uma das poucas meninas pobres e negras da turma, e imaginou que, na graduação, essa diferença se faria ainda mais intensa. Mas teve uma surpresa positiva: sua turma, que começou no primeiro semestre de 2021, foi a primeira na história do curso a ter 51% dos matriculados provenientes do ensino público, conta.
Ainda assim, o conflito de classes existe e, ela conta, "é muito difícil se sentir pertencente":
A São Francisco é uma faculdade construída pela elite e para a elite. À primeira vista, é um espaço hostil. Você entra lá e se sente diminuída pelos quadros enormes de homens brancos, pelas aulas que raramente citam autoras mulheres ou autores negros.
"Nunca presenciei um episódio explícito de exclusão, mas meus colegas, em geral, têm vivências bem diferentes. Parte deles vêm de famílias tradicionais do Judiciário, e isso é algo que afeta muito. Você tem que comprar um livro caro, por exemplo, e ela tem a coleção inteira na casa dela, porque o pai é juiz, a mãe é promotora, o avô fez São Francisco, o bisavô fez São Francisco. A pessoa está muito mais habituada àquele espaço".
"Precisamos derrotar Bolsonaro nas urnas"
Manuela tornou-se presidente do Centro Acadêmico XI de Agosto há pouco mais de um mês, quando a chapa Travessia foi eleita. Ela é a segunda mulher e negra a assumir o posto —a antecessora, Leticia Chagas, foi a primeira.
A trajetória no movimento estudantil começou só na graduação, quando conheceu o centro acadêmico, em 2020. Mas a vontade de debater e participar mais ativamente de temas ligados à política nasceu um pouco antes, nas últimas eleições presidenciais.
"Durante o ensino médio, não me engajei, mas meu pai sempre conversou muito sobre isso comigo em casa. Em 2018, quando o Bolsonaro ganhou as eleições, comecei a ficar inquieta, sentir urgência em fazer algo de verdade, participar dos processos, e não ficar só reclamando do governo no Twitter", diz.
Sua preocupação, diz, tem se voltado para demandas urgentes de estudantes pretos e de baixa renda da USP, especialmente da Faculdade de Direito. Entre elas estão o aumento da bolsa auxílio, que hoje é de R$ 500. "Os alunos precisam arrumar dois, três empregos para se manter em São Paulo, e muitos acabam trancando a matrícula, desistindo do ensino superior, porque precisam se sustentar", diz.
Também pretende comprar a briga da ampliação das cotas para negros nos concursos de professores. "A professora Eunice [de Jesus Prudente, uma das quatro juristas a ler a carta pela democracia no ato de 11 de agosto] é a única mulher negra dando aulas na São Francisco. isso é um absurdo. Quando um aluno vê um professor negro, ele entende que pode chegar lá, se sente representado e mais disposto a enfrentar dificuldades."
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