'Pantanal': 'Zuleica merece ser absolvida pelo público', defende atriz
Quando a atriz Aline Borges, de 47 anos, apareceu em "Pantanal", a novela estava no ar há quase dois meses, e o público, já afeiçoado pela carismática Maria Bruaca de Isabel Teixeira, não recebeu bem a "rival" dela, Zuleica, amante de Tenório (Murilo Benício), com quem ele mantinha uma família em segredo, fora do casamento.
"Não viam nela uma segunda família, mas 'a outra'. Recebi mensagens de pessoas atacando a personagem, e sempre na condição de mulher: 'É uma cachorra, uma vagabunda'. Como assim, gente? E esse homem? Ele pode trair, ser machista, racista, homofóbico, tudo de ruim, e quem leva pedra é a mulher", critica. "A Zuleica merece ser absolvida pelo público".
A personagem tem um perfil bastante complexo, até contraditório: embora seja uma mulher "bem resolvida, independente e feminista", nas palavras da intérprete, passou mais de duas décadas submetida ao papel de amante e criando sozinha os três filhos do casal. Em cenas que vão ao ar nos próximos dias, ela revelará que foi vítima de um estupro na juventude e engravidou —por se sentir frágil e sozinha, acabou engatando uma relação com Tenório e mentindo que o bebê era filho dele.
Na primeira versão, Zuleica e os três filhos eram representados por atores brancos: "É preciso exaltar a decisão do Bruno Luperi [que escreveu a atual versão de "Pantanal"] de colocar uma família preta", diz Aline, que também lamenta haver só um núcleo negro. "Vibro pelo dia em que vou entrar num set de gravação e ver 50% de pessoas pretas. Aí sim dá para falar: ok, temos igualdade".
Em 27 anos de carreira, a atriz diz que "dá para contar nos dedos de uma mão" os papéis que interpretou for do estereótipo de subserviência —pobreza, violência, trabalho doméstico— mas não percebia isso como faceta do racismo porque, até quatro anos atrás, não entendia que era uma mulher negra.
Essa descoberta só aconteceu aos 42 anos, quando foi convidada para integrar um elenco de atores negros na peça "Contos Negreiros do Brasil", e questionou: "Ué, mas eu não sou preta", lembra, em entrevista a Universa.
"Cresci alisando meu cabelo, minha mãe passou a vida afinando meu nariz com a mão, com o pregador. Eu demorei muito para me reconhecer como uma mulher preta. Num país racista como o Brasil, ninguém quer ser preto."
Confira os melhores trechos da conversa:
"Zuleica merece ser absolvida pelo público"
"Houve uma rejeição muito grande a Zuleica. O público não enxergava ela como uma segunda família, mas como 'a outra'. Isso suavizou um pouco quando ela começou a demonstrar empatia pela Maria [na novela, a personagem defende os direitos da primeira esposa do marido], ainda assim existe um preconceito muito grande, as pessoas não compreendem esse homem ter uma família paralela -embora isso seja muito comum no Brasil.
Essas famílias existem. A gente precisa parar de tacar pedra, de julgar, e se colocar no lugar dessa mulher e dos filhos dela. Se essa segunda família surgiu, é porque existe afeto.
Recebi muitas mensagens de pessoas atacando a Zuleica, e sempre na condição de mulher: 'É uma cachorra, uma vagabunda'. Como assim, gente? E esse homem? Não vi nenhum ataque desse nível ao Tenório. Ele pode trair, ser machsta, racista, homofóbico, tudo de ruim, e quem leva pedra é a mulher. A Zuleica merece ser absolvida pelo público".
"'Pantanal' só tem um núcleo de atores negros"
"Tem uma cena, que deve ir ao ar essa semana, em que a Zuleica relata para o Marcelo e para a Guta a violência sexual que ela sofreu, e lembra como começou a trabalhar no hospital: ela era diarista, como a maioria das mulheres pretas no Brasil, infelizmente. Fazia faxinas para pagar o curso de enfermagem. E conta que, quando entrou no hospital pela primeira vez, ficou muito emocionada, porque ela era a primeira pessoa da familia dela a entrar num espaço como aquele sem uma vassoura na mão.
Lendo esse texto, senti uma dor tão grande. No dia que eu li essa cena, eu estava sentada nos corredores dos Estúdios Globo, e percebi que de todas as pessoas que passavam por ali -atores, diretores, técnicos- as que carregavam uma vassoura, um carrinho de limpeza, eram pretas. Às vezes a gente está no corre e não observa, mas as pessoas pretas ainda estão em empregos de subserviência.
Eu tenho 27 anos de carreira, mas posso contar nos dedos de uma mão só quantos personagens eu fiz que fugiram a este estereótipo: comecei fazendo uma copeira na casa da Adriana Esteves, em "Coração de Estudante" [2002], depois fui a empregada da casa do Marcos Palmeira e da Deborah Evelyn em "Celebridade" [2003], depois fiz bandida, manicure?
A maior parte das pessoas pretas que estão na TV ocupam esses papéis -e seus personagens não têm família, história, complexidade, trama.
Eu vibro pelo dia em que vou entrar num set de gravação e ver 50% de pessoas pretas. Aí sim dá para falar: ok, temos igualdade. Se um set tem uma pequena cota de pessoas pretas e não uma proporção 50/50, não existe igualdade, aquele é um set racista.
Uma novela como Pantanal só tem um núcleo de pessoas pretas. É preciso exaltar a decisão do Bruno Luperi de colocar essa família preta em 'Pantanal', que traz questões raciais para a novela, porque a gente não pode lutar sozinho, precisamos de aliados antirracistas.
Mas a novela só tem um núcleo de pessoas pretas. E o racismo estrutural faz a gente normalizar isso —ligar a TV e não ver uma pessoa preta, mesmo que sejamos mais da metade da população.
Quando a Maria Bethânia canta, na abertura, que "os filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos verão" [trecho da música "Pantanal", originalmente gravada por Marcus Viana], ela está falando sobre isso: talvez nem eu e nem a minha filha estejamos vivas para ver os resultados da luta que a gente trava hoje contra o racismo. Mas os filhos dos filhos dos filhos dos nossos filhos verão".
"Não é fácil dizer: 'Sou uma mulher preta'"
"Eu demorei muito para me reconhecer como uma mulher preta. Num país racista como o Brasil, ninguém quer ser preto, nem as pessoas pretas.
Eu não tenho a pele retinta e cresci numa família sem consciência racial, que não se reconhece como preta, então eu achava que não era preta. Cresci alisando meu cabelo, minha mãe passou a vida afinando meu nariz com a mão, com o pregador.
Aos 42 anos, fui convidada para fazer a peça 'Contos Negreiros do Brasil', uma obra só com atores negros. E, quando me chamaram, questionei: 'Ué, mas eu não sou preta'.
Nos primeiros ensaios, o diretor pediu para cada ator escrever um monólogo sobre a própria vida e, de novo, pensei: 'Eu não sou preta, não tenho histórias'. Mas, quando peguei papel e caneta, veio tudo: desde as histórias que eu ouvia na infância sobre mim e meu irmão —coisas como: 'Ele é tão pretinho e ela é tão clarinha' ou 'nossa, ele ficou mais tempo no forno'— e fui escrevendo toda a minha trajetória até ali, quando comecei a me entender como mulher negra.
Não é do dia para a noite, claro. Quando você nega suas raízes a vida inteira, não é fácil dizer 'sou uma mulher preta', mas fui entendendo tudo aos poucos. O Brasil racista faz isso: 'Ah, você não tem a pele escura, você não é preta', porque enquanto você não se reconhece, deixa de lutar pelos seus direitos"
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