Topo

'Viajei sozinha por 18 meses pela África em busca das minhas origens'

Mel Ferreira durante viagem à Tanzânia - Arquivo pessoal
Mel Ferreira durante viagem à Tanzânia Imagem: Arquivo pessoal

Mel Ferreira, em depoimento a Priscila Carvalho

Colaboração para Universa, do Rio de Janeiro

22/08/2022 04h00

"Eu trabalhava como engenheira ambiental em uma multinacional na área de vazamento de óleo. Para a minha idade, 30 anos na época, já estava bem posicionada no mercado de trabalho, mas comecei a me questionar sobre aquilo e estava ficando doente. Na época, meu terapeuta disse que talvez estivesse com depressão e iniciei com medicamentos. Por causa disso, comecei a me questionar e pensei em pedir demissão.

Pensei que queria tirar um sabático e viajar por alguns países. Quando estava no processo de decisão, assisti a um filme chamado 'Machine Gun Preacher' ("Redenção", em português), que se passava em Uganda e mostrava como os refugiados do Sudão do Sul eram ajudados. Decidi que iria conhecer um pouco mais desse local que auxiliava todas essas pessoas.

Como não tinha formação específica em psicologia ou outra área social, pensei como poderia fazer isso. Comecei a pesquisar passagens para a África do Sul e de lá pegaria um ônibus para chegar até Uganda.

Para antecipar o processo, meu chefe me demitiu antes do tempo estimado e comecei a pesquisar passagens para dar início à minha viagem. Em setembro de 2018, parti para um mochilão pelos países africanos. No total, foram 18 meses de viagem por África do Sul, Zimbábue, Tanzânia, Moçambique, Zâmbia, Quênia, Uganda e Ruanda.

Além de assistir ao filme, que me despertou muita curiosidade, minha decisão foi focada na busca pela minha ancestralidade. Tenho uma família preta, mas cresci em um ambiente branco.

Fui bolsista em uma faculdade de elite e eu não olhava para esse lado da minha vida. Eu precisava me entender como uma pessoa preta.

Mel Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mel Ferreira no Rio Nilo, em Uganda
Imagem: Arquivo pessoal

Transição capilar

Alisei meu cabelo durante 15 anos e decidi que não iria mais fazer processos químicos durante a viagem. No começo eu até estava com ele liso e tentava, mas depois não mais.

Durante todos os meses em que estive na estrada, passei pelo processo de transição capilar e nas fotos sempre estava com o cabelo preso e uma bandana.

Como não podia gastar muita grana, decidi fazer work exchange, em que eu podia trabalhar em troca de acomodação e comida. No começo, não tinha decidido por onde iria passar e quais países visitaria. A única coisa da qual eu tinha certeza era que começaria a viagem na África do Sul e terminaria em Uganda.

Emprego em hostel e aula para crianças

Mel Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mel Ferreira em projeto social na Zâmbia
Imagem: Arquivo pessoal

No primeiro país, trabalhei em um hostel e cuidava da recepção. Lá consegui desenvolver meu inglês, mandar e-mails e cuidar das reservas. Permaneci no local por uns três meses.

Na Zâmbia, achei uma escola em uma vila e decidi dar aula de sustentabilidade para crianças. Criei um projeto que fazia reciclagem de papel e lixo orgânico. Como lá não tinha cinema, fiz uma vaquinha para comprar um retroprojetor e criei uma mini sala de cinema. Para comemorar, exibi o filme 'O menino que descobriu o vento'.

Lembro que eles se conectaram com a história e viram que podiam ser engenheiros. Nessa experiência que fiz com crianças, elas tinham pais e mães e não eram órfãs.

Como meu foco era economizar e também aprender, eu sempre intercalava entre projetos sociais e atividades em hostels e restaurantes. Eu nunca fazia uma viagem correndo e costumo dizer que era no modo slow travel (viajar devagar).

Quando cheguei no Quênia, onde morei por uns quatro meses, tive a oportunidade de conhecer um projeto de mulheres de 18 a 21 anos que entravam em um internato e aprendiam a costurar. Quando elas se formavam, precisavam vender o que produziam. Nesse estabelecimento dei aula de Excel, Word e empreendedorismo. Elas passavam um ano se dedicando à costura e não podiam fazer nada além do projeto.

'Contei com a ajuda de 158 pessoas'

Mel Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A viajante participando de uma entrevista no Quênia
Imagem: Arquivo pessoal

No entanto, o que mais me chamou a atenção era o fato de elas não terem máquina de costura para trabalhar depois que o internato acabasse. Foi então que decidi fazer uma vaquinha para comprar máquinas para meninas que estavam se formando. Consegui juntar R$ 14 mil e comprei 18 máquinas. Quando consegui o material, já estava em Uganda e tive de voltar para o Quênia para a doação. Tive ajuda de 158 pessoas no total e fiz o trajeto de ônibus.

Já em Moçambique passei um mês e trabalhei como tradutora de médicos em um projeto que cuidava de albinos no país. Eu tinha feito curso técnico em enfermagem e isso me ajudou muito. Os médicos atuavam para evitar que a população desenvolvesse câncer. O caso é de extrema importância, já que na divisa do país com o Malauí os albinos são considerados seres místicos e com superpoderes. Por causa disso, eles sofrem muitos sequestros e são assassinados com o intuito de se fazer uma poção.

Quando cheguei em Uganda preferi alugar uma casa. Morei em frente ao rio Nilo, que era perto de um hostel. Foi então que comecei a tirar fotos de passeios, raftings e fazer grana com isso. No início ganhava US$ 100, depois fui ganhando US$ 500.

Pensei em seguir com a viagem, mas só voltei para o Brasil por causa da pandemia de covid-19, no início de 2020. Pensei em ficar na África do Sul, mas as fronteiras estavam fechadas para brasileiros.

'Viajar sozinha não foi perrengue'

Mel Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Centro de albinos em Moçambique
Imagem: Arquivo pessoal

Mesmo viajando o tempo todo sem ninguém, eu nunca estava sozinha. Me senti segura em muitos lugares e achei o povo muito receptivo. Toda vez que pegava o passaporte brasileiro, todo mundo vinha falar comigo. Em nenhum momento me senti assediada.

Posso falar que passei os perrengues mesmo, mas que fizeram parte da viagem. Em Moçambique, fui surpreendida por um ciclone, quando estava indo para o norte do país. Estava tudo alagado, sem eletricidade e não conseguia tirar dinheiro no banco. Fiquei uns quatro ou cinco dias dessa forma e toda minha roupa molhada. Lembro que cheguei a ficar doente.

Outra situação difícil foi no Zimbábue, que estava sofrendo com uma crise política e o presidente cortou todas as redes sociais. Pelo menos lá a natureza me ajudou.

'Aprendi que tenho muitos talentos'

Antes mesmo de viajar, eu percebi que estava pronta. Eu me cobrava muito, queria fazer muitas coisas. Mas percebi que tenho muitos talentos.

Mel Ferreira - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Mel Ferreira na África do Sul
Imagem: Arquivo pessoal

Quando ainda estava na estrada, comecei a trabalhar com mídias sociais e consegui clientes. Ao voltar para o Brasil, mantive contato e comecei a empreender na internet, o que foi ótimo. A viagem serviu para eu perceber isso e foi o que mais aprendi.

Agora, vou lançar um curso de transição de carreira e dou mentorias para mulheres que querem mochilar pela África."

Mel Ferreira, 33 anos, engenheira ambiental, do Rio de Janeiro (RJ)