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'Você dá conta?' Por que mães ainda ouvem isso no mercado de trabalho?

A publicitária Yuri Mussoly, mãe há cinco meses - Arquivo Pessoal
A publicitária Yuri Mussoly, mãe há cinco meses Imagem: Arquivo Pessoal

Colaboração para Universa, em São Paulo

23/08/2022 04h00

Mãe há cinco meses do pequeno Otto, a publicitária Yuri Mussoly conta que flertava com a ideia da maternidade há anos. Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela e seu marido, Icaro, saíram da capital paulista para morar em uma casa mais tranquila na Grande São Paulo, e a vontade de se tornar mãe aumentou.

Com o cargo de chefe de criação do TikTok na América Latina e um currículo cheio de experiências em grandes agências de publicidade brasileiras, Yuri é convidada com frequência para ser jurada em festivais de comunicação, publicidade e entretenimento — incluindo alguns internacionais, como El Ojo de Iberoamérica e da Young Lions Bumper Hack Competition, do Cannes Lions International Festival of Creativity.

Há pouco tempo, recebeu um convite para ser jurada no festival do Clube de Criação, um posto que ocupou em outros anos. Para sua surpresa, ainda que conhecesse bem o trabalho e o tivesse desempenhado em outras ocasiões, Yuri foi questionada "se daria conta" de participar do júri e sobre como administraria seu tempo e os cuidados com o bebê durante a votação intensa, por horas, com câmera aberta.

"Me bateu errado esse questionamento infeliz do clube. Não é uma crítica que eu faço à liderança atual, que eu acredito que esteja conectada com ideias de diversidade e inclusão, mas sim ao mercado de trabalho, e principalmente à área da publicidade, em que muitas mães se sentem excluídas", conta Yuri.

O comentário veio de uma colega mulher — algo que a publicitária diz não ter enxergado como intenção de ofender, mas sim como a replicação de um velho modelo.

Na avaliação da profissional de recursos humanos Marina Antwarg, gerente de gestão de talentos da Mosaic Fertilizantes, são justamente as questões estruturais, enraizadas em parte da sociedade brasileira, que fazem o questionamento de se a profissional mulher "vai dar conta" virem à tona mesmo nos dias de hoje.

"Faz parte de uma história que vem lá de trás, de quando a mulher era considerada responsável somente por cuidar do filho e da casa. Muitas pessoas ainda carregam essa ideia, e acredito que o caminho para quebrar essa crença de limitação é a educação e a sensibilização, discutindo a questão dentro e fora das empresas, já que o tema permeia a sociedade como um todo."

Para mulher e mãe, ter uma carreira exige transpor muitas barreiras

"Eu sou uma exceção, digamos, no Brasil. A minha história não é igual à de tantas pessoas que vieram, como eu, de uma família periférica e pobre. Com mãe nordestina, empregada doméstica, e pai preto, eu não tinha as melhores chances, mas também não acredito em meritocracia. Tenho convicção de que conquistei o lugar que estou na carreira por esforço, mas também por um pouco de sorte, apoio, e até por ter a pele clara", afirma Yuri.

Antes de se tornar publicitária, ela ajudava a mãe nos trabalhos de limpeza, foi balconista de padaria e vendedora. Acabou estudando Letras e mais tarde se especializou na profissão que exerce hoje.

"Sempre foi difícil provar meu valor. Meu nome e minha aparência sempre disfarçavam minha origem, que omiti por vergonha. Depois entendi que minha história era poderosa e me traria mais força do que fraqueza e perdi o medo, mas só pude fazer isso quando eu alcancei um lugar de liderança. Senão, seria mais uma mulher inviabilizada."

Yuri diz que sua crítica ao episódio que sofreu no Clube de Criação, um relato que alcançou muitas pessoas no LinkedIn, foi uma reação a um sentimento de injustiça, que há bastante tempo não sentia.

"A maternidade trouxe essa luz, que algumas coisas não dá para deixar passar. Mesmo eu sendo uma profissional mulher de destaque, que com muito esforço transpôs barreiras, me senti minimizada. Foi um déjà-vu ruim da Yuri iniciando no mercado e recebendo feedback torto, deboche ou assédio de chefe, ou de quando eu às vezes trabalhava o triplo dos meus colegas para provar que existia", desabafa.

Por outro lado, ela conta ter se questionado se já esteve no 'outro lado'. "Fiquei pensando nas vezes que eu posso não ter sido empática. Será que eu já disse algo do gênero? Será que já me escapou? Infelizmente às vezes se coloca só no sapato do outro quando está na mesma situação. Eu não fazia a menor ideia da transformação profissional e pessoal que vinha com a maternidade."

A psicóloga e recrutadora Patricia Zito, que trabalha com empresas de diferentes segmentos há 20 anos, conta que, ao longo de sua vida profissional, observou práticas que prejudicavam as mães e que hoje, embora ainda não tenham deixado de existir, já são vistas com maus olhos.

"Por anos foi comum demitir mulheres depois que voltavam da licença-maternidade. Eu nunca precisei fazer uma demissão assim, mas o que se se entendia, nas entrelinhas, é que o empregador julgava que aquela pessoa teria menos disponibilidade, faltaria mais, aquela cultura bem antiga que a mãe não conseguiria exercer os dois papéis."

"Muitas empresas ainda vão 'na marra'. Depende muito da cultura de cada lugar, mas acredito que se trata de uma questão complexa que, aos poucos, vem mudando. As pessoas estão começando a entender que é fundamental apoiar uma mãe - afinal, até um homem que pratica um preconceito desses nasceu de uma mãe", completa Zito.

Mudança é lenta, mas positiva

Assim como as profissionais de recursos humanos ouvidas por Universa, Yuri acredita que a sociedade está caminhando para criar espaços profissionais mais empáticos — não só com mães, mas também com minorias e grupos historicamente marginalizados. "No mercado publicitário, por exemplo, temos uma nova geração de profissionais muito mais a par das discussões que estão acontecendo no mundo assumindo lugares de importância das empresas e agências."

Em relação ao papel do RH na mudança para um mercado de trabalho mais acolhedor, Patricia Zito reforça que o começo da cadeia tem início na escolha do profissional para cada vaga.

" Sempre que abre uma posição nova, eu recebo um briefing. Os clientes descrevem os perfis e eu busco quem são as pessoas com aquelas características, sendo mãe ou não. Mas se tem uma mãe entre os melhores perfis, eu quero é valorizar isso, porque mesmo eu não tendo filhos, considero que tem uma potência ali. Claro que há características pessoais de cada profissional, mas em geral, vejo que a maternidade traz uma série de habilidades que só contribuem para que essa mulher se desenvolva melhor ainda", aponta.

Nos casos em que a mulher sofre algum tipo de preconceito ou precisa de apoio no trabalho por estar se adaptando a uma nova rotina, Marina Antwarg, gerente de gestão de talentos da Mosaic Fertilizantes, avalia que o melhor caminho é o diálogo.

"Em uma empresa que está preocupada com isso, a pessoa se sente em um ambiente seguro para que o feedback seja feito, seja por canais formais de escuta ou até por estruturas específicas de diversidade e inclusão. Se não for o caso, é importante reportar para alguém de confiança, seja essa pessoa o líder direto, um par ou o próprio setor de recursos humanos. De qualquer forma, dizer o que está acontecendo é essencial para que haja mudança."