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OPINIÃO

Ze Lêoncio, Tenório e agora Trindade: é ok ser pai ausente em 'Pantanal'?

Protagonista de "Pantanal", Zé Leôncio foi pai ausente em dose tripla: não criou nenhum dos três filhos - João Miguel Jr./Globo
Protagonista de "Pantanal", Zé Leôncio foi pai ausente em dose tripla: não criou nenhum dos três filhos Imagem: João Miguel Jr./Globo

De Universa, em São Paulo

24/08/2022 04h00

Em "Pantanal", Irma (Camila Morgado) está grávida do peão Trindade (Gabriel Sater) —mas, ao que tudo indica, criará o filho sozinha: ele vai abandonar a família que mal chegou ser formar usando como desculpa o pacto que mantém com o diabo.

Esse não é o primeiro pai que decide ficar ausente da vida do filho em "Pantanal", mas, ao contrário do que prega o bom senso, a trama não critica o abandono paterno —também chamado de "aborto masculino". Pelo contrário: passa pano, pinta os pais ausentes como heróis, bons pais, que foram obrigados a se afastar dos filhos e sofrem com essa distância —seja para tocar os negócios, seja porque mantêm duas famílias, seja para proteger a criança do tal pacto com o diabo.

A maior prova disso é Zé Leôncio (Marcos Palmeira), o herói da novela: ele protege a natureza, promove negócios sustentáveis e defende os direitos das mulheres, mas há um traço importante na trajetória do personagem que passa praticamente batido: é um péssimo pai.

Zé Leôncio teve três filhos. E não criou nenhum.

O peão se orgulha da relação que manteve a vida toda com o pai, o velho Joventino, mas conseguiu ser um pai ausente para os três filhos, cada um à sua maneira, cada um com uma desculpa diferente.

O reencontro de Jove e Zé Leôncio, após décadas afastados, em "Pantanal" - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
O reencontro de Jove e Zé Leôncio, após décadas afastados, em "Pantanal"
Imagem: Reprodução/Globoplay

Jove, o filho distante

Quando a mãe de Jove (Jesuita Barbosa) levou a criança para criá-la no Rio de Janeiro, deixou claro que Zé Leôncio poderia visitá-lo quantas vezes quisesse, mas ele sumiu. Pagava pensão, mas não visitou o filho uma única vez nem telefonou para saber dele. E só voltou a encontrá-lo quando Jove o procurou, na vida adulta —quando, claro, houve um enorme choque de cultura entre um menino descolado criado no Rio de Janeiro e um peão dono de fazendas no Centro-Oeste do Brasil.

Zé Lucas, o filho desconhecido

Outro que "já chegou pronto", como o próprio Zé Leôncio disse, em algumas cenas, foi Zé Lucas (Irandhir Santos) -nascido do encontro de uma única noite do peão, então com 15 anos, e uma prostituta, o filho mais velho encontrou o pai por acaso.

Mesmo depois do reencontro, Zé Leôncio "não teve tempo" de dar seu nome ao filho até então chamado de "Zé Lucas de Nada", justamente por ter pai desconhecido, e também não fez questão de viajar para seu casamento, no Rio de Janeiro, mesmo sendo sua única família.

Tadeu, o filho renegado

Tadeu (José Loreto), o filho do meio e único que cresceu perto do pai, só foi assumido como filho publicamente na vida adulta. Mesmo sabendo que é filho do rei do gado, ele cresceu sendo apresentado apenas como um afilhado, filho da empregada da casa. Na trama, ele sofre por ser preterido pelo pai, que deixa clara a preferência pelos outros dois filhos.

Filhos bastardos de Tenório

Embora seja o mocinho da novela, no quesito "paternidade" Zé Leôncio empata com o vilão, Tenório (Murilo Benício), também ausente na vida dos quatro filhos —uma "legítima", Guta (Julia Dalavia), e outros três da segunda família, fora do casamento.

Em entrevista recente a Universa, Aline Borges, a atriz que interpreta Zuleica disse que, na prática, ela é uma mãe solo, e se referiu a Tenório como "pai turista", porque só vê os filhos de vez em quando.

De heróis a vilão, novela exalta pais ruins

Mais de 6 milhões de brasileiros não têm o nome do pai na certidão de nascimento, mas há muito mais gente que, como Tadeu, cresceu com o pai conhecido e até presente dentro de casa, mas completamente ausente de afeto —o que não deixa de ser uma forma de abandono.

E, para uma trama que soube adaptar diversos temas da versão de 1990 para a atual —atores negros no elenco, combate à homofobia contra Zaquieu (Silvero Pereira) e defesa do meio ambiente no agronegócio— "Pantanal" parece ter esquecido de fazer alguma crítica ou atualização a respeito do abandono paterno, que já não era aceitável em 1990.

Pelo contrário: "Pantanal" exagera nas cenas que exaltam a figura Leôncio como pai, problematizando muito pouco o fato de que ele não foi presente na vida de nenhum dos filhos.

A novela mostra o sofrimento dele ao brigar com Joventino, inclusive fazendo ofensas homofóbicas ao filho, no começo da trama, por exemplo, ou fazendo questão de ter os três filhos por perto, na fazenda, mesmo que eles queiram seguir outro rumo.

Até Tenório, vilão clássico de novela das oito, tem seus momentos "paizão", dizendo que se orgulha dos três filhos homens e que o nascimento de Marcelo (Lucas Leto), o mais velho, foi o dia mais feliz de sua vida.

Com Trindade, agora, não é diferente: ele aparece em longas cenas sofrendo por deixar Irma grávida, se lamentando por precisar "proteger" a criança se afastando.

Resta saber se o público de 2022 comprará a narrativa. A ver.