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'O desafio é fazer as mulheres se reconhecerem como pessoas com direitos'

Nilvanda Sena Rodrigues é finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 - Imagem: Júlia Rodrigues/UOL
Nilvanda Sena Rodrigues é finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 Imagem: Imagem: Júlia Rodrigues/UOL

Colaboração para Universa

25/08/2022 04h00

No dia 15 de julho passado, uma jovem dependente química de 29 anos deu à luz uma menina no Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher da Unicamp, em Campinas (SP). Deixou o hospital sem a bebê, que nasceu frágil. Com apenas 33 semanas de gestação, pesando 1,531 quilo, precisou ficar na incubadora. Duas semanas depois, numa das visitas à filha, soube que a criança havia levado um choque no equipamento. Desesperada, tirou a criança dali sem autorização médica e a levou para casa. Na semana seguinte, quando o conselho tutelar foi acionado pelo hospital, ela levou a bebê para atendimento no posto de saúde, mas a equipe se recusou a atendê-la por considerar que a mãe havia errado ao sair do hospital sem permissão médica.

Por sorte, a agende de saúde Nilvanda Sena Rodrigues, 54 anos, interviu. Explicou aos colegas do posto o que havia acontecido na UTI neonatal. Conversou, então, com a mãe, que estava com medo de voltar a de ter o atendimento novamente negado, e passou a acompanhar o caso, monitorando também se a criança continua segura em casa. Até o fechamento desta reportagem, a criança estava bem, em casa e pesando 2,335 quilos.

Finalista do Prêmio Inspiradoras 2022 na categoria Representantes Avon, Nilvanda conseguiu agir rápido e de maneira precisa graças a sua formação como promotora legal popular. Trata-se de uma liderança comunitária capacitada com noções básicas de direito para facilitar o acesso da população - em geral, mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade - a compreender e batalhar por seus direitos junto aos órgãos públicos.

O nosso grande desafio é fazer com que as mulheres se reconheçam como pessoas que têm direitos e apresentar a elas formas de reivindicá-los. Nilvanda Sena Rodrigues, promotora legal popular

O trabalho é voluntário e está desvinculado de instituições governamentais. O modelo surgiu nos anos 1980 em outros países da América Latina, como Peru e Chile, e chegou aqui uma década depois. Além de atuar junto à população, algumas promotoras também dão cursos para multiplicar os conhecimentos e formar outras mulheres como elas.

É o caso de Nilvanda, que atua como promotora legal popular desde 2010 e ajuda a formar novas mulheres na função em cursos organizados pela Associação de Promotoras Legais Populares Cida da Terra de Campinas e Região. Por ano, cerca de 90 mulheres fazem o treinamento.

Nos últimos três anos, a associação também ofereceu o curso a cerca de 45 detentas da Penitenciária Feminina de Campinas com o intuito de prepará-las para retomar a vida em sociedade.

"Mana, tá ligada que sua filha podia morrer?"

Em suas andanças pelo bairro atendido pelo Posto de Saúde de Barão Geraldo, na região Norte de Campinas, ela aproveita as visitas domiciliares para ver, além das questões de saúde, as condições de vida das famílias e, assim, poder ajudar. No caso da mãe com o recém-nascido, além de intermediar uma solução com o posto de saúde e o conselho tutelar, a promotora legal também arrecadou alimentos e roupas.

"Mana, tá ligada que sua filha podia morrer? Vou te ajudar, mas vamos fazer um trato: leva ela no posto e me procura lá", recorda-se de como falou com a moça, tentando se aproximar dela pela linguagem. "Eu ouço e aconselho em vez de apenas julgar", diz.

Houve casos em que a agente de saúde conseguiu convencer mulheres a denunciar casos de violência doméstica. Em um deles, juntou alguns produtos Avon, que revende na cidade, para fazer uma rifa e comprar uma passagem para que a mulher voltasse para a casa da família em Minas Gerais. "O cara fazia ameaças de matá-la e eu consegui mostrar a importância de denunciar. E nós não deixamos uma mulher ir sozinha à delegacia porque sabemos que elas precisam de apoio", afirma.

A médica de família e comunidade Albanett Barreto Nestor teve Nilvanda como uma das facilitadoras quando fez o curso de promotora legal popular, em 2018. "Ela tem dons artísticos e os utiliza para levar a sabedoria popular e mais informações para o empoderamento feminino", afirma, observando o quão importante considera o trabalho das promotoras. "A Nil, como agente de saúde, tem amplo acesso às pessoas. Aprendi muito mais com ela e as demais promotoras do que na minha formação acadêmica sobre escuta ativa e acolhimento de mulheres em situação de violência. Uma atuação fundamental", avalia.

Conhecimento como arma

Nilvanda nasceu em Goiânia, a nona filha de um pai cearense e uma mãe pernambucana. A família se mudava muito e, ainda criança, foi morar no Maranhão. Aos 10 anos, havia perdido o pai e a mãe e tornou-se a responsável por cuidar da casa e da comida da família em Imperatriz. Acordava às 4h30 da manhã para ir à beira do rio lavar roupas com as lavadeiras. Enquanto a roupa secava no mangue, elas cantavam. "Eu me sentia importante ao lado daquelas mulheres. Era uma alegria quando parávamos para cantar", diz Nilvanda, que depois compreendeu que era a verdadeira órfã da família. "Assumi o papel de cuidar de todos. Eles continuaram tendo comida feita, casa limpa e roupa lavada", diz.

Foi aos 10 anos também que ela entrou para a escola. Os irmãos mais velhos já a haviam ensinado a ler, mas ela queria aprender mais. "Meu pai era analfabeto e minha mãe havia desaprendido a ler e a escrever. Perto de falecer, ela voltou para o Mobral e deixou as paredes de casa rabiscadas com o próprio nome. Ela sempre me dizia: 'enquanto tiver um pedaço de papelão e um carvão, escreva'", conta Nilvanda.

Depois de completar o ensino médio, já morando com os irmãos em São José do Rio Preto, interior de São Paulo, a agente de saúde se dedicou ao teatro e à música. Uma "griote", como se define - termo utilizado em alguns países da África ocidental para nomear contadores de histórias, cantores e poetas - Nilvanda canta e compõe cordéis, sambas de roda e cirandas. Com o nome artístico de Nil Cenas, ela se apresenta em teatro - recentemente, está com um espetáculo em cartaz no Sesi e vai percorrer algumas cidades do interior paulista - e também participa de ações voltadas para mulheres em seu trabalho como promotora legal popular.

"Isso reafirma em mim a artista que sou. A minha atuação nas comunidades e nas escolas é o que mais gosto de fazer. Sempre tem uma mãe semelhante a mim, que cria seus filhos sozinha, com dificuldades, e que vem me dizer como faço bem o meu papel de cantora. De alguma forma, ela entende que somos iguais", diz.

Sonho: ter a própria escola

No ano que vem, Nilvanda conclui a graduação em pedagogia. Na PUC de Campinas teve professoras que mostraram que matemática não é coisa de gênio e enxergou que os pais, ainda que analfabetos, eram inteligentes.

"Meu pai, como agricultor, era um matemático porque sabia bem medir a terra, onde cavar para plantar, enquanto a minha mãe conseguia ver a hora corretamente dependendo da sombra que fazia com um movimento da mão", diz. Inspirada na própria história, ela produziu o trabalho de conclusão de curso sobre os conceitos matemáticos nas manifestações culturais em comunidades tradicionais negras e quilombos urbanos.

Ao se formar, seu objetivo já está definido: ela tem o projeto de ter a própria escola infantil. O foco principal é ser uma creche com atendimento noturno. "Quero que as mães que trabalham à noite, independentemente da profissão, tenham onde deixar seus filhos com segurança", diz. O projeto já tem até nome: Creche Escola Casa da Mãe Mestra.

Enquanto não realiza esse sonho, ela segue cantando e atuando como promotora legal popular. "Sou a indesejável. Perto de mim, ninguém faz piadas ou solta frases racistas durante um atendimento. Quando aparece, já dizem: 'lá vem a Nil defender esse povo'. Eu sou desse povo, como não vou ficar do lado dele", finaliza.

Sobre o Prêmio Inspiradoras

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias: Conscientização e acolhimento, Acesso à justiça, Inovação, Informação para a vida, Igualdade e autonomia, Influenciadoras, Representantes Avon. Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser.

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. O foco está nas seguintes causas: enfrentamento às violências contra mulheres e meninas e ao câncer de mama, incentivo ao avanço científico e à promoção da equidade de gênero, do empoderamento econômico e da cidadania feminina.