Gastronomia da favela: 'Um aspargo é o preço da minha feira inteira'
"Mais um dia no barraco e hoje vou fazer?": se você segue a Thallita Flor, já sabe que na sequência do bordão vem uma receita simples, vegetariana e com ingredientes orgânicos. Mas não é só isso. São muitas as mensagens que a influencer quer passar nos vídeos que faz em sua cozinha, no bairro do Fonseca, em Niterói (RJ) —um ambiente como o da maioria das pessoas, com panelas usadas e marcadas, fogão pequeno e lixeira basculante sobre a pia.
Ela também se diferencia por aproveitar todo e qualquer alimento que tem em casa, mesmo aqueles que já estão meio sem vida, além das cascas e dos talos.
Assim como Thallita, outras influencers que fazem conteúdo de gastronomia na favela mostram que a comunidade quer e tem o direito de comer bem. A carioca Regina Tchelly, criadora do Favela Orgânica, ensina nas redes como se beneficiar dos alimentos e fazer pequenas hortas em casa, em qualquer espaço. Já a nutricionista paulistana Patrícia Santos, autora do perfil @nutrifavela, dá dicas de como aproveitar da melhor maneira tudo o que você consegue comprar na xepa.
A seguir, elas compartilham suas histórias de vida com Universa e provam que, com os temperos certos, os alimentos mais simples podem dar origem a pratos muito saborosos.
'Na favela, falo sobre alimentação sem carne de igual para igual'
"No final do ano passado, comecei a pensar em fazer vídeos que pudessem dialogar com quem sou. Queria mostrar a minha cozinha e falar que era possível fazer comida boa e simples em casa mesmo. Aí criei o 'Mais um dia no barraco' mostrando o meu espaço aqui no morro no bairro do Fonseca, em Niterói. Procuro apresentar receitas que são verdadeiramente possíveis de preparar com o que se tem em casa. Mais do que o passo a passo, quero inspirar, falar das propriedades integrais do alimento e dar dicas de como aproveitar tudo o que ele tem de melhor.
Também quero mostrar como são bons os nossos ingredientes, pois me incomoda muito colocar num lugar negativo a nossa comida. Mandioca, farofa, feijão e angu são considerados comida de pobre pela elite, mas é preciso ter orgulho do que é nosso, da nossa cultura. Não é uma questão de romantização da pobreza, é resistência.
Minhas receitas não levam ingredientes de origem animal. Me tornei vegetariana por volta dos 16 anos, comecei a ler sobre o assunto e me interessei. Virei vegana e hoje me denomino antiespecista, que é ser contra a hierarquia das espécies, achar que o ser humano é maior e que pode explorar as outras. O veganismo é ainda um movimento branco e eu, como mulher negra e periférica, não me sentia bem com isso.
Meus pais sempre trabalharam com eventos, ele DJ e ela decoradora. Na época não havia opções sem carne em buffets e comecei a ver que tinha um caminho ali. Em 2015 passei a fazer marmitas veganas para me manter durante a faculdade de artes cênicas. Aos 19 anos montei um buffet de festa com cardápio totalmente vegano, mas continuei com as quentinhas até conseguir formar um portfólio. Hoje o buffet, cuja cozinha fica no centro do Rio de Janeiro, atende eventos e trabalhamos sem exploração de animais. Também prefiro comprar de pequenos produtores.
Além de criar conteúdo em vídeo, faço eventos e oficinas também para a comunidade, mas sem impor meu estilo de alimentação. Sendo da favela eu consigo dialogar sobre alimentação sem carne, mas não vai ser uma imposição, será de igual para igual. Não vou chegar falando para alguém ser vegano, mas sobre as infinitas possibilidades dos legumes e verduras e como aproveitar o alimento de forma integral. É outro papo."
Thallita Flor, 27 anos, atriz, palhaça e cozinheira, de Niterói (RJ)
'Antes de ensinar uma receita, penso se a mulher da minha comunidade vai conseguir fazer'
"Moro no morro do Vietnã, na zona sul de São Paulo, e tenho um filho autista de 16 anos chamado Kevin. Hoje faço conteúdo sobre comida e nutrição acessível em meu perfil @nutrifavela e vivo disso. Minha casa tem uma cozinha boa, tenho armários, tudo planejado. Consigo ir a um restaurante bom se tiver vontade, pedir um japonês. Mas precisei trabalhar muito e enfrentar dificuldades para chegar até aqui.
Sempre gostei bastante de cozinhar, mas minha ligação mais forte com a comida começou quando eu cheguei no fundo do poço, depois da separação do pai do meu filho, cerca de 10 anos atrás. Cheguei a pesar 150 quilos, tinha me esquecido de mim. Comecei a pesquisar nas redes sociais sobre alimentação, pois eu havia desenvolvido compulsão alimentar, um transtorno que tenho até hoje.
O que mais me deixou indignada foi que todos os perfis indicavam receitas com farinha de amêndoa, aspargo, umas coisas que não dá para comprar. Aspargo era o preço da minha feira inteira.
Comecei a inventar minhas próprias receitas e chamar amigas para comer. Na época eu trabalhava como recepcionista de hotel. Aí, resolvi fazer faculdade de nutrição. Trabalhava para pagar a faculdade como recepcionista de hospital. Era muito difícil ter grana, mas eu me virava.
Comia muito molho de tomate com ovo —e não é que um dia descobri que essa era uma comida lá de fora, tradicional?
Por causa da minha indignação resolvi também montar o perfil para mostrar meu dia a dia na comunidade. Eu queria alimentar as pessoas, mostrar que dava para fazer comida gostosa com pouco.
Então, além das receitas, também passei a falar de autoestima e de nutrição de um jeito fácil. Nutrir é se alimentar, ter prazer, saúde.
Como estamos passando por essa crise, comecei a fazer receitas sem frango nem carne vermelha. Outro dia fiz um filé de chuchu, que fica uma delícia empanado. Para as crianças, ensinei hambúrguer de feijão com batata, pois carne moída está impossível de comprar. Além disso, dá para aproveitar todas as partes de todos os alimentos. Se for fazer um purê de batatas, por exemplo, faça chips com a casca.
As pessoas curtem. Uma das minhas receitas é o 'yakissobra', uma versão do yakissoba com o que está guardado na geladeira. Estamos sem opção, então tem que aproveitar tudo. Antes de ensinar uma receita eu penso se a mulher da minha comunidade vai conseguir fazer. Aquela mãe com cinco filhos e o marido preso vai ter condições? A maior fonte de inspiração para minhas receitas é a necessidade. Já passei muita, sei bem o que é."
Patrícia Santos, 41 anos, nutricionista, de São Paulo (SP)
'Preparo pratos com o que as pessoas desperdiçam'
"Nasci na cidade de Serraria, na Paraíba. Quando eu tinha 19 anos, surgiu a oportunidade de trabalhar como empregada doméstica no Rio de Janeiro. Na época, eu ganhava R$ 80 na minha cidade e aqui ganharia R$ 250. Vim sozinha e fui morar com minha irmã na comunidade Chapéu-Mangueira, que fica no Leme, zona sul do Rio de Janeiro. Trabalhava na casa da dona Tereza como doméstica e acompanhante.
Quando eu cheguei na cidade, fui a uma feira livre e fiquei chocada com o tanto de comida que era deixada de lado. Um feirante disse para mim que aquela xepa nem os porcos comiam. Sem me conformar com aquilo, passei a levar talos e outras coisas que poderiam ser jogadas fora para fazer chips e suflês na casa da patroa.
Nem sei explicar como sei fazer receitas daquilo que as pessoas desperdiçam. Comecei a cozinhar aos 11 anos na casa dos meus pais. Sempre tinha uma mesa cheirosa e colorida e as visitas adoravam comer com a gente.
Na casa em que trabalhava fazia chips de folha de couve-flor e de beterraba, risoto de casca de melancia, pé de moleque com casca de banana, tudo de maneira intuitiva.
Em 2011 participei de um projeto da Agência Redes da Juventude de incentivo e apresentei o que seria o Favela Orgânica. Minha ideia era trabalhar todo o ciclo do alimento, desde a plantação até o uso de todas as partes, para não haver desperdício. Aí, nasceu o meu projeto para que as pessoas da favela fizessem hortas em qualquer espaço, nem que fosse em uma latinha.
O alimento é capaz de se multiplicar em muitas coisas. Meu projeto não ganhou, mas resolvi chamar mulheres da comunidade para aprenderem a cozinhar na minha casa e elas ficaram encantadas. O boca a boca foi me levando a ficar conhecida.
Hoje temos cinco projetos de combate ao desperdício na comunidade, passei a ser chamada para fazer palestras e virei youtuber. Tudo isso aconteceu porque sou um furacão que aproveita até o talo da vida.
Há quatro anos, consegui montar um lugar próprio para o projeto, na comunidade. Ao lado da minha casa, em um espaço alugado, tenho a cozinha e minha horta orgânica. Estou lutando pela multiplicação da comida e para ensinar que comer bem é possível com o que você tem dentro de casa."
Regina Tchelly, 40 anos, cozinheira e empreendedora social, do Rio de Janeiro (RJ)
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