As minas do rap: 'Ainda olham mais os nossos atributos do que o talento'
Dos cinco headliners anunciados no perfil do Instagram do Sons da Rua, festival que esbanja uma programação com a nata do rap nacional, apenas uma atração é feminina, Tasha & Tracie. Abrindo outro aplicativo no celular, o Spotify, na playlist "Gigantes do Rap Nacional", o dedo desliza por segundos na tela até chegar em "Preta de Quebrada", de Flora Matos, a 36ª música da lista de 65 e primeira interpretada apenas por uma cantora. Antes disso, Negra Li aparece duas vezes com "O Trem", do RZO, e "Rap é Compromisso", feat com Sabotage.
No entanto, olhando o copo meio cheio, "Diretoria", último álbum das gêmeas da Zona Norte de São Paulo, teve mais de 20 milhões de streamings, enquanto "Empoderada", clipe de MC Soffia, ganhou o prêmio internacional CLAIFF23. Não que elas precisem de validações das suas carreiras, mas, entre prêmios e espaços em line-ups de grandes eventos, os percalços que elas superam na cena do rap de São Paulo ficam ainda mais nítidos.
À frente dos coletivos Rimas & Melodias e As Mina Risca, a DJ e jornalista Mayra Maldjian aponta que a internet se tornou uma ferramenta contra a onipresença masculina nesse cenário. "Ter festivais e casas de shows com poucas ou nenhuma mulher é uma violência contra nós. Agora, com equipamentos um pouco mais acessíveis e o avanço da luta pelos nossos direitos, a gente consegue unir mais forças e ter alguns aliados para expor a sujeirada, fazer beat, gravar músicas e fazer shows", considera a beatmaker.
O corre para achar seu espaço em um universo lotado de homens, em cima dos palcos e nos bastidores, é inevitável e passa de geração a geração. Mas, além disso, nomes como Drik Barbosa, MC Soffia e Duquesa estão abrindo novas discussões, questionando estilos pré-estabelecidos e propondo novos modelos de relações com as suas letras. A seguir, elas contam como se conectaram com o rap e refletem sobre a presença da mulher no gênero nos dias de hoje.
'Ainda olham mais os nossos atributos do que o talento'
Filha de um baiano e de uma pernambucana, Drik Barbosa brinca que chegou de surpresa na vida dos pais, que acabavam de completar seus 18 e 20 anos e buscavam por melhores oportunidades em São Paulo. A primeira parada da família foi a zona sul da cidade, mas a compositora tem mais lembranças da Vila Mariana, onde passou infância e adolescência dentro de uma ocupação. "Além dos meus pais, cresci ali com tios e primos grudados. Parede com parede, barraco com barraco. Nessa época, meu pai, que era músico, precisou parar de tocar na noite com meu tio para cuidar de mim e da minha mãe", descreve Drik, que anos depois ganhou uma irmã, a Kelly, que hoje faz parte da sua banda como backing vocal.
O rap apareceu para Drik em meio aos outros ritmos potentes da quebrada, como o samba e o forró. Com os amigos e primos como ponte para o gênero, em 2006, ela lembra que pisou pela primeira vez na Batalha da Santa Cruz. "Eu muito nova, com 14 anos, e a única mulher do grupo, tive que esperar para ir em um dia em que todos eles conseguiam, porque tinha um receio de colar sozinha", lembra.
A falta de proporção entre homens e mulheres esbarrava na autoestima e sensação de segurança também para Drik." Hoje entendo que as roupas largas são uma expressão do hip hop, que ainda uso e amo, mas naquela época era uma saída para me proteger e me esconder dos homens", explica a cantora, sobre a sua tentativa de não querer chamar nenhum tipo de atenção no espaço.
Entre uma batalha e outra, Drik percebia que, quando uma mulher participava, os elementos para o opositor rimar eram bem diferentes do que os dos homens. "Sempre tinha uma associação às partes íntimas para desestabilizar a mulher, mas com o tempo os apresentadores começaram a colocar limites. No geral, eram mais caras conscientes", comenta a artista de 30 anos, que viu de perto essa chegada das pautas de gênero no rap.
Na real, mais do que ver, a compositora protagonizou essa transformação ao lado de outras mulheres. Entre 2012 e 2013, ela lançou as primeiras composições, "Pra eternizar" e "Não é mais você", e foi parar até no Oscar com "Aos Olhos de uma Criança", trilha do filme "O Menino e o Mundo", que cantou junto com o parceiro musical Emicida. Dois anos depois, Mayra Maldjian convidou Drik para integrar o grupo Rimas & Melodias. Ao lado de Alt Niss, Karol de Souza, Stefanie, Tássia Reis e Tatiana Bispo, as sete artistas uniram hip hop, R&B e soul em um encontro revolucionário na cena do rap feminino.
"São vários desafios que a gente enfrenta, enquanto mulher no rap e na vida. É foda ver quantas artistas incríveis lutam para colocar seu trabalho na rua de forma digna e ter reconhecimento, mas ao mesmo tempo isso é triste e não deve ser romantizado. Vivemos em uma estrutura machista e sexista pra caramba, que infelizmente olha muito mais para alguns atributos do que talento e criatividade de fato, né?", comenta Drik, que tem a Laboratório Fantasma como gravadora atualmente, mas que não esquece a realidade de ser artista independente.
"Espero que cada vez mais selos e gravadoras reconheçam mulheres de uma forma realmente respeitosa para que elas possam realizar seu trampo", projeta a cantora, desejando que a Lab também receba mais artistas mulheres em seu espaço.
'Criei minha própria gravadora'
Imaginar uma balada rap com uma televisão no meio para assistir clipe soa estranho para Soffia Gomes da Rocha Gregório Correia, a MC Soffia. A cena foi descrita para a rapper de 18 anos pelos pais dela, a empresária e produtora cultural Kamilah Pimentel e Yan Gregório Correa. Os dois "fervidos", nas palavras da filha, foram os responsáveis por apresentá-la de forma natural à cultura negra e, consequentemente, ao rap. "Minha família inteira tem contato com a música, porque viemos do samba-rock. Meu bisavô materno também era músico autodidata, só que nunca teve o reconhecimento que merecia", afirma Soffia, que fala com orgulho sobre a ligação da família com a educação: "todo mundo estudado".
Por causa dessa base, a infância da paulistana passou por locais e experiências distantes do lugar-comum das demais crianças. Em casa, por exemplo, as músicas infantis davam espaço para Karol Conká, Criolo, Elza Soares e Rappin Hood. "Decorava todas as letras, sendo que nem sabia ler e escrever ainda", diz Soffia. Já os passeios no shopping eram trocados por eventos, como Feira Preta, Parada LGBTQIAP+, e tardes no SESC.
A cada palco e microfone disponíveis, mãe, avó e tios arrumavam um jeito de falar que Soffia sabia mandar rima, talento que foi lapidado desde os seis anos na primeira oficina de hip hop. "Quando minha mãe viu que eu queria ser cantora, ela largou o trabalho dela para viver minha carreira e realizar meu sonho. Foi difícil, porque não viemos de uma família rica e tão estruturada. Então, ela que foi minha investidora, mas meus primeiros shows eram de graça, não tinha camarim, transporte, nada", lembra a rapper, que gravou seu primeiro clipe, "Menina Pretinha", com orçamento apertado.
O vídeo, que tem mais de 2 milhões de visualizações no YouTube, alavancou a carreira dela na cena do hip hop. Como uma carta para meninas negras, a composição, feita ainda na infância e ditada para a mãe registrar as palavras, questiona exotificação e exalta a ancestralidade e o black money.
O modelo de negócio, em que negros fazem a grana circular, é adotado no gerenciamento da sua carreira por meio do próprio selo, o Akanni Orire. "Quando não temos gravadora, tudo é dinheiro, por isso criei a minha. Para gerir melhor as coisas, minha mãe foi estudar direitos autorais. Isso e manter os pés no chão foram passos que nos ajudaram a não cair na ilusão do mundo artístico", diz Soffia.
A lucidez para não só entender a burocracia dos bastidores também é testada na forma como se reapresenta ao público. A compositora entende que agora, aos 18 anos, uma chave precisou ser virada. "Eu, quando criança, me destacava, mas, agora que fiquei mais velha, do que vou falar? Não posso continuar cantando música infantil. Tenho que conquistar um público mais velho, e já tem outras mulheres nessa luta e falando com ele", reflete a MC, que mantém um diálogo próximo com os jovens em seus perfis no Instagram e no TikTok.
Por lá, Soffia também desbrava um terreno fértil das publis, que se intensificaram e deram uma força nas finanças durante a pandemia. "No começo, queria apenas fazer show e viver disso, sabe? Mas passei a entender o que é ser a cara de uma marca e como pagam muito bem! A galera do rap não está em um nível de ostentar, como o funk, só que temos que ostentar também. Faço publicidade para poder gravar meus clipes e fazer minhas músicas", alega Soffia, que considera ainda que boa parte dos rappers, principalmente as mulheres, não tem a mesma oportunidade.
"Precisamos cada vez mais valorizar as minas que estão no corre há muitos anos. Às vezes, a gente só acaba consumindo as músicas dos caras, mas e as minas? Nós também temos que ser crush. Todo mundo fala desses cinco, que eu sei que você sabe quem são. Desses cinco, todo mundo fala, mas e as mulheres? Apenas aceitem que precisam falar de nós, das nossas diversidades e do nosso talento", manda o recado.
'Fui expulsa do palco por pedir para aumentar o volume do microfone'
Nascida em Feira de Santana (BA), mas com base em terras paulistas, Duquesa, 22 anos, é a aposta como a primeira voz feminina da Boogie Naipe, produtora orquestrada pela empresária Eliane Dias e fruto de um sonho de Mano Brown. Os Racionais MC's fazem parte da história de Jeysa Ribeiro Conceição, nome de batismo da rapper, desde os nove anos, quando seu pai apresentou a discografia do grupo para ela.
"Quando escutei, o que mais me pegou foi a batida, tanto que por um tempo minha vontade era de dançar rap e não de ser cantora", comenta Duquesa, que entrou em um estúdio pela primeira vez em um bairro periférico da sua cidade.
Nesse encontro orgânico e familiar, Duquesa passou a dar mais atenção para o lado compositora e, a partir de 2017, criou um caminho com letras que tratam sobre relações, afeto e outros sentimentos bem distantes da marra e da sisudez com que o rap costuma ser visto. "Claro que falo sobre as minhas vivências, mas minhas composições não tratam apenas do presente. Por meio delas, gosto de emanar energia para o universo do que desejo para mim", explica ela, que encontrou um coro potente para essas mensagens durante o primeiro show da sua carreira no Cena, um dos principais festivais de rap do país.
A celebração desses sonhos, no entanto, não apaga episódios de opressão que viveu, principalmente na época em que era artista independente. "No começo, ninguém me dava espaço para cantar. Quando conseguia, tinha um jogo de interesses e propostas que não tinham ligação com o meu trabalho. O pior episódio aconteceu quando fui expulsa do palco por pedir coisas necessárias, como aumentar o volume do microfone. Nesse dia, vi o machismo dentro do movimento e do meu trabalho", lembra a rapper.
Para o segundo semestre, Duquesa inaugura uma nova fase na carreira com o lançamento do seu primeiro EP. Com o rap como base, o projeto vai abraçar outros estilos que permeiam a trajetória da cantora, como o trap e o R&B. Em junho, ela lançou o single e o videoclipe "Carta Para Mim Mesma", um gostinho do que deve vir por aí: "Ano passado eu morri também/ Mas eu tô firme pro próximo". Que venham muitos outros.
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