'Cristina incomoda pois rompe com estereótipos femininos', diz especialista
Após o atentado contra a vice-presidente da Argentina, Cristina Kirchner, na noite de quinta-feira (1), o governo nacional decretou feriado em todo o país nesta sexta-feira (2), a favor da paz. Movimentos de esquerda e de direitos humanos convocaram uma mobilização intitulada "Todos por Cristina", na praça de Maio, em frente a Casa Rosada, sede do governo argentino, no centro de Buenos Aires. Cristina teve uma arma apontada para o seu rosto pelo brasileiro Fernando Andrés Sagab Montiel próximo a sua residência.
Na manifestação, centenas de mulheres concordavam em um único discurso: o ataque à Cristina também é uma questão de gênero. "O atentado e toda a violência que ela tem sofrido durante sua carreira política não são comparáveis aos de nenhum homem. A hostilizam, a deslegitimam e se atrevem fazer isso porque é ela, uma mulher de luta", opinou Taliana Gonzales, de 30 anos, presente no ato pela paz.
A socióloga e educadora argentina, Noeli Expósito, analisa o atentato à Cristina a outros acontecimentos que simbolizam o lado radical da violência de gênero na política: "A tentativa de assassinato da vice-presidente não foi um fato isolado, de um atirador louco. As mulheres são alvo da violência em múltiplas dimensões, desde o espaço doméstico até a política, passando por recortes sociais, de classe, gênero e raça", afirma. A socióloga lembra outro caso emblemático na América do Sul: a execução da vereadora brasileira Marielle Franco, mulher negra, em março de 2018, cujo crime segue até hoje sem respostas.
Dezenas de movimentos feministas da Argentina repudiaram os ataques à vice-presidente. Para a pesquisadora Agustina Gradin, integrante do grupo Observatório de Violência contra Mulheres Julieta Lanteri, o atentado contra Cristina, além de expressar a misoginia, revela o ódio de classe: "O que vimos na noite desta quinta-feira é a clara expressão da violência machista dentro da política, porque é contra uma mulher que é referência na luta pelas políticas de gênero e que nos últimos anos tem atuado em defesa dos direitos das mulheres. É preciso ler o atentado nesse contexto. A democracia só poderá ser exercida com paridade de direitos e sem violência", destaca Agustina.
É importante lembrar que Cristina Kirchner também é senadora; a casa foi responsável pela aprovação do texto que legalizou o aborto na Argentina, em 30 de dezembro de 2020, após ser aprovado pela Câmara dos Deputados. Em janeiro de 2021, o projeto de lei foi sancionado pelo atual presidente Alberto Fernandez.
Para Malena Magnasco, Secretária de Gêneros e Direitos Humanos da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, que investiga a representação de mulheres na política, a principal questão do atentado é a construção discursiva de ódio direcionado à Cristina, o que tem relação com suas posições políticas, mas "principalmente por ser uma mulher que lidera, que foi presidente por duas vezes (2007-2015) e que é aliada dos principais movimentos feministas da Argentina. Cristina incorporou a luta das mulheres quando votou pela lei do aborto", afirma.
Segundo Malena, na Argentina há uma lei (de número 26.485, sancionada em 2009) que abrange diferentes modalidades de violência de gênero, inclusive na política. De acordo com ela, toda violência política é reconhecida como aquela praticada em espaço público. O texto especifica alguns espaços de violência, como o institucional e o midiático, por exemplo. Malena defende que a violência política na Argentina está centrada na figura de Cristina e que essa é uma estratégia para desestabilizar outras mulheres que atuam no meio, intimidando-as, principalmente as que não atendem ao estereótipo de princesa", observou.
A Secretária de Gêneros e Direitos humanos afirmou que a postura da vice-presidente incomoda setores machistas da sociedade, que a rotulam como "atrevida", "louca", "de fala forte" e "brava", o que, em suas palavras, seriam características positivas e admiráveis se ela fosse um homem.
Cristina desestabiliza o imaginário da mulher servil e rompe com que se convencionou chamar de 'universo feminino´
Malena Magnasco, Secretária de Gêneros e Direitos Humanos da Universidade de Buenos Aires
Laura Albaine, cientista política e pesquisadora do CONICET (Centro de Investigações Científicas e Ténicas) faz uma análise a respeito dos marcos normativos em países sul americanos que tentam incorporar a problemática da violência de gênero em suas ações. Em suas pesquisas, ela detectou os três maiores obstáculos no combate à violência política de gênero. "O primeiro é a falta de representatividade institucional e a falta de equidade dentro dos partidos. O segundo é um retrocesso em projetos que privilegiam questões de gênero. Falta articulação e um consenso sobre a forma de legislar esse tema. Os homens, que em geral dominam os espaços da política institucional, não estão interessados em leis que transformam o status quo", constata.
Os efeitos da misoginia são objetivos, o que, para Noeli, reforça a necessidade de união e conscientização política entre homens e mulheres: "Temos que nos cuidar muito, mas não podemos deixar de ocupar as ruas, principalmente nesse momento histórico que é crítico a todas as mulheres da região. É muito grave o que aconteceu com Cristina", finalizou Noeli.
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