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'Acabar o medo', diz chilena sobre chance do aborto entrar na Constituição

Fila de votação no Chile: em nova Carta, o aborto voluntário pode virar direito constiticional - MARTIN BERNETTI/AFP
Fila de votação no Chile: em nova Carta, o aborto voluntário pode virar direito constiticional Imagem: MARTIN BERNETTI/AFP

Amanda Cotrim

Colaboração para Universa, de Buenos Aires

04/09/2022 14h21


Antônia* tinha 28 anos quando descobriu que estava grávida de sete semanas. Começou sua corrida contra o tempo para interromper a gestação em um Chile que, atualmente, proíbe o aborto voluntário. A solidão de Antônia, hoje com 36, foi construída em bases objetivas: o medo e a punição, já que em seu país uma mulher pode ser presa por realizar o procedimento. Só em 2017 que o a nação passou a reconhecer o aborto apenas em caso de estupro, risco de morte da mulher e inviabilidade do feto.

Neste domingo (4), os chilenos vão às urnas decidirem se são "a favor" ou "contra" o texto da nova Constituição, o qual traz, pela primeira vez, a interrupção voluntária da gravidez como direito constitucional e não como status de lei.

O texto da nova Constituição Chilena traz em seu artigo 61 a consagração dos direitos reprodutivos, entre eles a maternidade voluntária e a interrupção voluntária da gravidez. O artigo foi construído em articulação com amplas organizações feministas do Chile, como explica a coordenadora do Movimento Feminista 8M, Karina Nohles.

"Ter a legalização do aborto na Constituição é fundamental em um país onde os legisladores não estão interessados nas demandas das mulheres", diz. Ela lembrou que em setembro de 2021, um projeto de descriminalização do aborto foi apresentado por movimentos feministas, aprovado na Câmara, mas recusado no Senado chileno. "Foi a partir daí que nós, feministas, entendemos rapidamente que pela via do poder parlamentar seria impossível consagrar esse direito. A Convenção Constitucional, como órgão paritário, era o único espaço de poder que poderíamos habilitar essa demanda urgente", contextualizou. Se o país aprovar a nova Constituição, o Chile pode ser tornar o primeiro país da América Latina a reconhecer o aborto como direito constitucional.

"Só as mulheres sabem a dor de um aborto clandestino"

O processo de passar por um aborto é íntimo, dolorido e solitário, mas ele não precisa ser vivido em desamparo. No segundo aborto, aos 32 anos, Antônia teve uma experiência diferente, pois contou com a ajuda de ONGs chilenas que apoiam mulheres durante o procedimento. "A minha primeira experiência foi traumática. Não contei para ninguém que estava grávida, não desejava seguir com a gestação. Tive hemorragia e medo de ir a um hospital e ser denunciada. No segundo aborto, apesar de tudo, não senti medo, porque estava amparada, com informação e segura", comparou a médica que hoje vive na Europa, mas está no Chile para a votação do plebiscito. "Só as mulheres sabem toda a dor que um aborto clandestino significa. É uma decisão sobre a nossa vida e sobre o direito de não vivermos isso sozinhas. Eu espero que as mulheres possam decidir sobre a gravidez, com apoio médico, psicológico, em todo o processo. Que acabe o medo", exaltou.

O plebiscito sobre a nova Constituição neste domingo, 4, começou a ser gerido nos protestos violentamente reprimidos de 2019, como demanda das ruas que exigiam direitos sociais, saúde, educação e o fim da constituição da ditadura de Augusto Pinochet. O processo constituinte foi uma forma institucional que os partidos políticos da época encontraram de conter as manifestações e a insatisfação generalizada que havia em um país desgastado pela desigualdade social.

A votação deste domingo é mais um passo em um processo que começou em outubro de 2020, quando a população chilena votou a favor de uma nova Constituição. A nova carta foi feita a partir de uma Convenção Constitucional, escrita por mãos de representantes independentes, fora do sistema parlamentar tradicional, compostos por mulheres, população indígena, movimentos populares e contou com paridade de gênero. A Convenção foi composta por 154 representantes em base partidária, algo inédito no mundo.

Para Veronica Avila, ativista do direito ao aborto no Chile e integrante das Feministas em Luta, o aborto como direito constitucional representa salvar vida de mulheres: "É um salto enorme; é sobre salvar vidas, é disso que se trata. Sem julgamentos, sem medo. O artigo também garante a maternidade voluntária, em que a mulher possa decidir onde quer ter seu filho e que o Estado garanta segurança e condições para um parto voluntário e digno", explicou.

Além da legalização do aborto e da maternidade voluntária, o texto traz outros pontos que atuam diretamente sobre a vida das mulheres, como o artigo 6 que consagra ao menos 50% de paridade de gênero em todos os setores do Estado. Essa norma é, segundo Karina, inédita no Chile e foi construída desde a Convenção que foi paritária, permitindo a criação deste artigo.

O reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidado passa a ser respaldado pelo Estado, garantido no artigo 49 e 50. Esse direito permite as pessoas que durante anos exerceram atividades domésticas e de cuidado sem remuneração, passem a ter aposentadoria e segurança social, explica Karina.

"A nova Constituição também garante a vida livre de violência de gênero para crianças, adolescentes, tanto no âmbito privado/íntimo como público/institucional. O texto também traz a promoção da educação sexual integral, com mudança no currículo escolar, reconhecendo a diversidade. No artigo 51, o Estado se compromete a criar casas de apoio para pessoas que sofrem violência de gênero e não podem voltar para suas casas, onde, na maioria dos vezes, está o agressor", conclui a Coordenadora do Movimento Feminista 8M.

Quais as chances da nova Constituição ser aprovada?


Na quinta-feira (1), a campanha do Plebiscito foi oficialmente finalizada. Desde que o texto foi concluído, em julho deste ano, o voto da população tem sido disputado nas ruas, nas relações interpessoais e na mídia.

Uma cartilha com o texto completo da Nova Constituição foi vendida a 10 reais "como água" nas ruas no país. Ainda que o material estivesse disponível de forma gratuita online, muitas pessoas preferiram ler e anotar no papel as dúvidas para poder se informar a respeito dos pontos mais polêmicos da cartilha.

As últimas pesquisas apontam que 47% dos entrevistados pretendem votar contra a nova Constituição. Os números também indicam que ao menos 15% dos eleitores estão indecisos. Esses indícios, para Karina, são justificáveis em razão das notícias falsas que circulam sobre a nova Constituição. "As principais fakes news dizem que o nome do país vai mudar, que haverá o fim da bandeira e do hino, que os indígenas estariam livres para cometerem crimes, que o aborto seria permitido aos nove meses de gestação, entre outras mentiras", destacou.

A campanha de notícias falsas fez com que a ex-presidente chilena Michelle Bachelet, que acaba de deixar o cargo de Alta Comissária da ONU (Organizações das Nações Unidas) entrasse literalmente na campanha do lado que aprova a nova Constituição. Ela aparece em um vídeo onde visita um grupo de mulheres para conversar sobre a nova carta e as inverdades ditas sobre ela. "Vocês sabiam que a Constituição atual não diz nada sobre as mulheres e que a de agora tem 35 artigos só sobre esse tema?", pergunta a ex-presidente. Así fue la aparición de Michelle Bachelet en la franja del Apruebo - YouTube

O resultado da votação, que é obrigatória, deve sair por volta das seis da tarde, horário local. Caso o "a favor" ganhe, o texto deverá ser regulamentado pelo Congresso. Até lá, a atual Constituição, da época da ditadura, seguiria vigente. Já caso o "contra" ganhe, o governo terá que fechar um acordo com o Congresso para saber se haverá nova Convenção Constitucional, quando se dará e se passará por plebiscito. O presidente do Chile, Gabriel Boric, já sinalizou que formar nova Convenção seria redundante.

Verônica acredita que, ainda que vença o voto "contra" a nova Constituição, não haverá retrocesso sobre o tema dos direitos das mulheres no Chile. "Temos uma lei de aborto de 2017, que é limitada, mas já é um avanço desde 1989, que substituiu uma lei da ditadura. Além disso, o movimento feminista, que luta pelos direitos das mulheres, não se constrói por via institucional. Nossas bases seguem firmes e continuaremos trabalhando", finaliza

*O nome foi trocado a pedido da entrevistada