Casos reais de feminicídio compõem narrativa da série 'Não foi minha culpa'
Priscila, Carol, Valéria, Maria do Carmo, Joana, Mary Lee. Os nomes são de personagens fictícios, mas as histórias por trás deles são reais: casos de feminicídio e violência contra a mulher que inspiraram as 10 narrativas da série "Não Foi Minha Culpa", que estreou em agosto na plataforma de streaming Star+.
Com roteiro de Juliana Rosenthal e Michelle Ferreira e direção de Susanna Lira, a antologia traz episódios independentes, que abordam as diversas formas de violência —física, psicológica, moral, patrimonial e sexual— e refletem uma realidade assustadora: dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), publicado este ano, revelam que, só em 2021, no Brasil, um estupro aconteceu a cada 10 minutos e um feminicídio a cada sete horas. O ano acumulou 1.319 mortes por feminicídio e mais de 56 mil estupros —e isso só entre os casos registrados.
O ponto em comum entre as narrativas é um bloco de Carnaval, que, segundo as roteiristas, foi escolhido como cenário universal por representar as muitas contradições que vivemos no país. "São dias em que as pessoas estão no seu volume máximo, para o bem e para o mal. A festa é um símbolo de liberdade, cordialidade e alegria; em contraponto, somos o quinto país que mais mata mulheres no mundo. E o Carnaval é tão democrático quanto a violência doméstica. É um ambiente em que todo tipo de gente circula, assim como todo tipo de mulher sofre", diz a roteirista Juliana Rosenthal. Essa, aliás, foi uma das ambições da série: mostrar como a violência atravessa todas as mulheres.
Os casos reais que serviram como base das narrativas são fruto de uma longa pesquisa e trazem essa diversidade: há mulheres brancas, negras, mais jovens, mais velhas, pobres, ricas, trans, hétero e bissexuais. "A gente tinha muito material, infelizmente. Priorizamos pegar os elementos mais importantes de cada relação e tentamos mapear um comportamento comum entre o crescimento da violência —porque, sim, isso existe, é como se fosse um modus operandi do agressor. Esse foi o alicerce para a ficção", explica Juliana.
Além das vítimas, para refletir as muitas formas de violência, a série traz diferentes personalidades de agressores: parceiros afetivos, filhos, chefes, pessoas do convívio social ou profissional que, de alguma forma, estabelecem uma relação de poder desigual com as vítimas. "Sabemos que, no geral, os agressores são pessoas próximas. Pessoas que trabalham com essas mulheres, que dormem com essas mulheres, maridos, filhos. Tentamos fazer esse panorama para colar nessa realidade que infelizmente a gente vive", conta Michelle, também roteirista da série.
'Machismo vai continuar enquanto não contarmos histórias do nosso jeito'
Outra preocupação foi não permitir que o próprio roteiro caísse em estereótipos, marcando personagens —tanto vítimas quanto agressores— em lugares-comuns que limitasse a identificação das pessoas com a história. "A dramaturgia, assim como tudo que está dentro do sistema patriarcal, reproduz muitas vezes uma estrutura machista, mesmo quando quer combater o machismo", comenta Michelle. "Tivemos de prestar atenção inclusive em nós mesmas, porque fazemos parte dessa estrutura. Então, buscamos subverter alguns sistemas dramatúrgicos para poder criar esse novo mito, porque enquanto a gente não começar a contar as nossas próprias histórias do nosso jeito, isso vai continuar se perpetuando."
Apesar do tratamento ficcional, a série não poupa conexões com a realidade. Os abusadores são espécies de arquétipos reimaginados justamente com a intenção de escapar dos estereótipos, assim como as vítimas. Em cada história, fica evidente uma costura delicada para mostrar os aspectos mais verossímeis da natureza humana, considerando as contradições que todos nós carregamos. "Pessoas reais têm contradições reais. Então a dramaturgia tem que buscar a contradição. Em todos os níveis, para todos os personagens", diz Michelle.
Há também mulheres abusivas, machistas, pessoas próximas que, a princípio, duvidam ou banalizam as situações de abuso, evidenciando a solidão da mulher que sofre violência e ampliando seu universo ao mostrar que, sem rede de apoio, se torna quase impossível sair daquela situação.
Ainda que seja focada nos casos de violência contra a mulher e feminicídio, a série reflete a variedade da vida real. "Claro, quando falamos em morte e violência doméstica, as mulheres são maioria, mas também foi uma preocupação colocar na série homens legais e mulheres desgraçadas", explica Juliana.
"O nosso inimigo, o que a gente quer combater, não é o gênero masculino, é o patriarcado", complementa Michelle. "Queremos mostrar que o patriarcado é nocivo para todos, não só para as mulheres. Assim como o antirracismo não é uma luta só das pessoas negras, mas de todas as pessoas, o machismo também é um problema coletivo."
E esse repertório também toca as vivências das próprias roteiristas. Elas contam que, em vários momentos, se emocionaram e se identificaram com as narrativas. "Foi um processo muito forte, intenso. Tivemos pesadelos, crises de choro. Você se identifica, começa a se dar conta de coisas que já viveu. Por outro lado, é um pouco como disse Simone de Beauvoir: um amor que não quer morrer precisa virar literatura. Neste caso, uma dor que não quer morrer tem que virar arte", diz Juliana.
"Não conheço nenhuma mulher que nunca sofreu nenhum tipo de abuso, acho difícil existir. E por trás da estatística existem pessoas, e estamos entre essas pessoas", diz Michelle. "Mas isso que a Ju falou é muito verdadeiro: também é um processo de cura por meio da arte. E a gente precisa sentir isso. Um roteirista que não sente, que não tem empatia, não consegue escrever. Então a gente colocou as nossas coisas ali, pulverizadas entre muitas outras coisas, mas acho que está tudo lá."
As camadas da violência
"Muitos casos de abuso nessas relações afetivas funcionam como o processo de cozinhar uma lagosta. Você não pode colocar o bicho na água fervendo porque senão ele se assusta e pula. Então a água começa numa temperatura mais branda e vai esquentando aos poucos, até ferver. A lagosta morre sem se dar conta", explica Michelle.
A metáfora é especialmente importante num país com um alto índice de violência doméstica como o Brasil, e a série busca retratar esses abusos subjetivos delineando os passos que constituem a escalada da violência —as pequenas manipulações, as agressões disfarçadas de atos de amor, a devastação lenta da autoestima, até evoluir para o abuso físico ou, em última instância, o feminicídio.
"A gente sabe que muitas mulheres sofrem violência ou morrem, ouvimos o tempo todo histórias horríveis. Mas a gente quis mostrar como é que se dá essa violência. Como chegamos de um amor à morte? Você está do lado de quem você mais ama e a pessoa te mata? Como você deixou isso acontecer? Por que não foi embora?", diz Juliana.
"Então tem uma tentativa de responder às perguntas que fazem quando tentam justificar ou condenar a vítima. Quisemos mostrar como é difícil sair dessas relações, como inclui muitos outros elementos, além dos episódios de abuso: tem o amor, o apego, a esperança de que as coisas melhorem, de que a pessoa mude. Às vezes, tem dependência emocional, financeira. Nunca é uma relação isenta."
Em mais de um episódio, o roteiro reproduz o ciclo da violência, que, de acordo com a definição da psicóloga norte-americana Lenore Walker divulgada pelo Instituto Maria da Penha, é composto por três principais fases: o aumento da tensão, marcado por acessos de ciúme e raiva do agressor, que pode humilhar, manipular e ignorar a vítima; o ato de violência, quando a tensão acumulada culmina em agressão, quando é comum a mulher ficar prostrada e paralisada pela explosão do outro; e o arrependimento, no qual o agressor busca a reconciliação, convencendo a vítima de que irá mudar.
O que se segue, geralmente, é um período pacífico, no qual o agressor mostra estar se esforçando para melhorar, até que a relação volta para a primeira fase novamente. "Neste ciclo da violência, achamos muito importante alertar como a autoestima da mulher, que no sistema patriarcal já não é das melhores, pode ser totalmente abalada. Até ela perder o último respiro de força que tem para reagir", diz Michelle. "Existem várias formas de essa destruição acontecer e a gente quis jogar luz nisso, nas pequenas coisas, as reclamações, os ataques, sinais de alerta sutis que não podem ser ignorados."
Confinada com o namorado abusivo
Essas "pequenas" violências ganharam um peso ainda maior durante a pandemia —de acordo com levantamento do Instituto Datafolha para o FBSP, uma em cada quatro mulheres acima de 16 anos sofreu algum tipo de agressão no período de isolamento—, como é abordado no primeiro episódio da série, "Carol & Priscila", no qual a personagem está em isolamento num apartamento com o namorado abusivo.
"É um episódio extremamente confinado em que essas coisas ganham uma dimensão muito maior. E, de fato, vimos como os casos de violência aumentaram na pandemia. Como os abusos escalaram rapidamente no confinamento. Então, dramaturgicamente, isso fica bastante didático", diz Michelle.
Para as roteiristas, as histórias de "Não Foi Minha Culpa" devem transcender a obra e falar com mulheres e homens, vítimas e agressores, e todas as pessoas envolvidas de alguma forma em situações de violência. "A gente acredita muito na função social da série para além do entretenimento. Acredito de verdade que quem assiste sai diferente. Mesmo que um episódio não seja tão impactante quanto outro, em algum lugar a pessoa vai ser tocada. Se a gente conseguir salvar alguém, uma pessoa que seja, já valeu", comenta Michelle.
"A gente espera que as pessoas, as mulheres, tomem consciência de que podem estar vivendo ou já viveram uma violência. Claro que é impossível você se blindar de qualquer tipo de abuso e achar que está imune a isso. Mas acho que quanto mais informação a gente tiver e compartilhar, mais protegidas estaremos", complementa Juliana.
Além do roteiro de Juliana e Michelle e direção de Susanna Lira, o elenco traz nomes como Bianca Comparato, Lorena Comparato, Fernanda Nobre, Malu Mader e Luana Xavier.
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