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Mulherengo, mas impotente: filme retrata D. Pedro como 'tóxico' e 'frágil'

Cauã Reymond vive D. Pedro 1º em novo filme da diretora Laís Bodanzky - Fabio Braga/Divulgação
Cauã Reymond vive D. Pedro 1º em novo filme da diretora Laís Bodanzky Imagem: Fabio Braga/Divulgação

Alan de Faria

Colaboração para Universa, em São Paulo

07/09/2022 04h00

Esqueça a imagem de D. Pedro 1º viril, montado em um cavalo, com uma espada no braço direito proclamando a independência do Brasil, como aparece em "Independência ou Morte!", quadro de cunho nacionalista pintado por Pedro Américo em 1888.

No recém-lançado filme "A Viagem de Pedro", em cartaz nos cinemas, a diretora e roteirista Laís Bodanzky retrata o imperador no ano de 1831, quando abdicou do trono brasileiro em favor de seu filho, D. Pedro 2º, e retornou a Portugal a fim de recuperar o trono português de seu irmão, D. Miguel. Mas, a essa altura, é um monarca fragilizado e impotente, inclusive sexualmente, a ponto de, em uma sequência do longa-metragem, o ator Cauã Reymond, que vive o protagonista, esbravejar: "Como vou ganhar uma guerra de pau mole?".

A fala não estava no roteiro e foi dita de improviso por Cauã, mas escancara perfeitamente aquele momento da vida de uma figura histórica que boa parte dos livros didáticos retrata só como herói, quase um semideus.

"Foi uma escolha assertiva mostrar esse lado de Pedro mais fragilizado, algo que não me recordo de ver em outras obras. Queríamos um ponto de vista diferente desse herói que aprendemos nos livros de história", diz Cauã a Universa.

"Queria ir na contramão do que já havia sido produzido a respeito do Pedro. Há poucos documentos a respeito dessa viagem de retorno. Mas sabemos que ele estava em um momento de grave crise pessoal, com sífilis avançada, tendo delírios e sentindo-se culpado pela morte de Leopoldina, sua primeira mulher", afirma a diretora Laís Bodanzky.

"Além disso, ele sofria com a impotência sexual, o que era um martírio para um homem que parecia relacionar o poder justamente com essa virilidade toda", completa.

Para Cauã, esse é um dos temas mais sensíveis do filme. "Ao mesmo passo que ele se mostrava um homem gentil, era tóxico em seus relacionamento e, como muitos homens da época e atuais, achava que era dono do corpo de suas mulheres, as tratando com agressividade e possessividade."

Cena de "A Viagem de Pedro" - Fabio Braga/Divulgação - Fabio Braga/Divulgação
Cena de "A Viagem de Pedro"
Imagem: Fabio Braga/Divulgação

O filme mostra também a masculinidade tóxica de Pedro. Ele tratava com rispidez sua segunda esposa, Amélia (Victoria Guerra), e descontava nela, com violência, a dificuldade que tinha de engravidá-la —com ela, teve apenas uma filha. Já em relação a Leopoldina (papel de Luise Heyer), sua primeira mulher, o longa exibe o pouco caso de Pedro em relação ao pedido da esposa de ter um tempo maior de descanso entre uma gestação e outra —ela, que morreria em 1826, teve sete filhos entre 1819 e 1825.

"Ser mulher, naquela época, era tão difícil quanto hoje. Acontece que, atualmente, as questões femininas são noticiadas na imprensa, o feminicídio é pauta na mídia e condenado pela opinião pública, enquanto que, no Brasil Império, ser submissa era um padrão para a mulher", conta a diretora, que lamenta também o processo de apagamento histórico e político de figuras como Leopoldina.

Foi ela, e não o marido, quem assinou o documento declarando a independência do Brasil, em 2 de setembro de 1822. Há dúvidas, inclusive, sobre como a história tem sido contada e se ele teria proclamado a independência às margens do rio Ipiranga, com uniformes de gala, rodeado de uma grande comitiva.

À luz das discussões sobre masculinidade tóxica, Cauã diz sempre se colocar como ouvinte.

"Trazemos muito desse machismo estrutural de geração em geração. E já está mais do que provado que isso não é mais tolerado nos dias atuais. Temos que estar com uma escuta afiada e observado nossas atitudes. Pode parecer clichê, mas eu realmente busco desconstrução em mim." Cauã Reymond

"O povo não está nos livros didáticos"

A história de "A Viagem de Pedro" se passa praticamente todo dentro de uma embarcação, uma reprodução de uma fragata do início do século 19 —as cenas foram filmadas em estúdio e também no oceano Atlântico, navegando de Salvador ao Rio de Janeiro. Dentro dela, além de Pedro e a esposa, marinheiros e negros escravizados no Brasil que, rumo à Portugal, sonhavam com a liberdade. Afinal de contas, como afirma Dira, papel de Isabél Zuaa, "na Europa não havia escravidão".

"Era preciso mostrar como era a sociedade brasileira, que tinha uma população preta em sua maioria, assim como é hoje. E a história é feita de pessoas, mas, infelizmente, o povo não tem sido contemplado nos marcos oficiais em livros didáticos", lamenta Laís, que incluiu na história do filme personagens negros de diferentes origens e religiões, assim como era no período escravista do país.

Destaca-se entre esses personagens justamente a figura de Dira, que, nas palavras da diretora, seria o que se chama atualmente de "mulher empoderada". Em uma das cenas, ela explica como as mulheres podem sentir prazer.

"Foi uma questão abordada com muita delicadeza, pois, historicamente, a mulher negra é bastante sexualizada. Em nossas pesquisas, encontramos uma sociedade na África em que as mulheres não são submissas e têm consciência de que seus corpos não podem ser objetificados nem objetos dos homens", conta a cineasta, que contou com a colaboração dos próprios atores no processo de feitura do roteiro e na criação das cenas.

Inclusive, foi em conversa com Isabél que a diretora alterou o desfecho da personagem Dira. Na ideia inicial, ela seria presa ao fim da viagem. Segundo Laís, a atriz comentou que não conseguiria, novamente, fazer uma cena de uma mulher preta se dando mal ao fim da história. Assim, a sequência foi reconstruída, permitindo que Dira mantivesse o sonho da liberdade. "Era importante para a Isabél, como atriz e mulher preta mostrar às novas gerações que são possíveis outros desfechos".

Laís observa que, por meio do olhar contemporâneo, é possível perceber que o apagamento da mulher, a masculinidade tóxica e o racismo estrutural são problemas que já existiam naquela época e que, infelizmente, perduram até hoje. Ainda bem, diz ela, que há respostas quanto a isso tudo, como os movimentos MeToo e o Vidas Pretas Importam.