De Elza a Tina Turner, atrizes unem histórias famosas e pessoais em musical
"Foram muitas mulheres que lutaram para a gente chegar aonde estamos hoje", dizem as atrizes do musical "Elas Brilham - Vozes que Iluminam e Transformam o Mundo". Mas para além de um levantamento biográfico, o espetáculo quer enaltecer o empoderamento feminino através de uma ode ao coletivo, ressaltando a trajetória de luta e superação de mulheres como Aretha Franklin, Tina Turner e Elis Regina principalmente pela música. "Elas Brilham", assim, começa passando por gêneros como MPB, samba, jazz, rock e blues, até chegar aos dias atuais com um repertório que inclui Anitta, Iza e Beyoncé.
O forte do musical, no entanto, é que, para contar essa história que nos trouxe onde estamos hoje, não deixa de ressaltar a trajetória das próprias intérpretes que sobem ao palco para emprestar seu corpo e voz a essas mulheres que transformaram o mundo atual. O "elas" do título não se refere apenas às cantoras homenageadas, mas a cada uma das atrizes que participaram ativamente da montagem, trazendo as suas próprias vivências para dentro da cena.
No bloco que deveria ser uma reverência às divas do MPB, as atrizes também compartilham com o público um pouco do sofrimento e das conquistas que tiveram até chegar aonde chegaram. "É um dos momentos mais fortes e escutamos as pessoas da plateia soluçando", diz Diva Menner, uma das participantes. "Foi uma catarse", completa Ivanna Domenyco. "Trabalho em musicais há 32 anos e sempre recebemos partituras, textos, tudo já montado. É a primeira vez que estou trabalhando em um sistema colaborativo."
"Você passa por um estupro e normaliza a situação para não morrer"
Nesse processo de construção coletiva, a sugestão do diretor Frederico Reder para Ivanna foi que ela falasse sobre algo que sempre costuma enfatizar, o fato de ter perdido seus pais jovem e ter seguido, desde os 24 anos, sem alguém para ampará-la. Para além dessa experiência, no entanto, a intérprete pediu para compartilhar outro dado de sua trajetória: o dia em que perdeu sua virgindade em decorrência de um estupro. "Era algo que eu gostaria de falar mesmo que fosse de uma forma delicada, que não chocasse, mas achava importante porque outras mulheres iriam se identificar com o que vivi", explica.
É por isso que, ao se apresentar, logo antes de cantar uma música de Angela Maria, Ivanna conta ao público do musical que, no lugar do que poderia ter sido a sua primeira noite de amor, aconteceu algo contra sua vontade.
Hoje, aos 52 anos, ela diz que consegue falar sem dores sobre o episódio que vivenciou quando tinha apenas 19. "Amigas que passaram pela mesma situação vieram a mim para saber como lidei com esse trauma", diz. "Já falei tanto sobre isso que consegui expurgar essa história e hoje ela não é mais uma dor absurda, mas um alerta porque, sendo mulher, ninguém está livre de passar por isso."
Filha única, à época diante de um pai já com saúde debilitada, após o estupro Ivanna optou por "engolir tudo sozinha". "Eu era muito jovem e a única coisa que passou pela minha cabeça era que eu precisava proteger aquelas duas pessoas que deram a vida por mim."
Para conseguir sair episódio que sofreu, após tentativas em vão de lutar contra o seu agressor —um amigo de um amigo que chegou a apontar uma arma para ela—, Ivanna também precisou dizer ao estuprador que não havia acontecido nada demais e que ele poderia seguir seu caminho. "Tentei lutar, pensei em me jogar do carro e sair rolando pelo barranco para me salvar, mas diante do pavor dele me matar, tive uma sacada e disse que estava tudo certo", lembra.
"Você passa por um trauma desse e precisa normalizar a situação para não morrer", diz a atriz, que se tornou terapeuta holística. Foi a espiritualidade, ela acredita, que lhe deu forças para seguir em frente. "Eu tinha me tornado uma pessoa triste, amarga. Demorei para entender o que me aconteceu e que eu não tive culpa."
Antes de se tornar atriz e cantora, Ivanna também precisou lidar com a resistência de seu pai, que queria que ela seguisse uma profissão que desse a ela um título de doutora. Foi na música, no entanto, que ela encontrou seu lugar e onde, diz agora, preenche todos seus dias. É por isso que, em seu relato para o público de Elas Brilham, ela termina dizendo que "não existe tristeza nem solidão quando fazemos o que amamos."
"Acham que tem o direito de nos matar por sermos gays ou lésbicas"
Diferentemente da história de Ivanna, quem descobriu o talento de Ludmillah Anjos como cantora foi sua mãe, que a levava desde cedo para participar dos concursos de calouro na comunidade. "Ninguém na minha família nunca foi tão ousado quanto minha mãe. Ela era cantora de rádio, mas minha avó nunca a apoiou", explica a atriz. "Por isso comigo foi diferente, minha mãe me pegava pela mão e perguntava o que eu queria fazer."
Foi por esse motivo que, quando precisou escolher qual parte da sua história iria compartilhar com o público do musical Elas Brilham, a intérprete de 37 anos logo pensou em enaltecer sua "mainha Lícia". "Meu nome é Ludmillah Anjos, mas prefiro que me chamem de filha de Lícia", diz em sua apresentação.
Mas mesmo com todo incentivo de sua mãe, Ludmillah não deixou de sentir na pele as dificuldades para se tornar uma artista. Quando participou de um programa de televisão, em 2009, por exemplo, diz ter sentido preconceito pelo fato de ser nordestina. "Senti o deboche na maneira que falavam comigo, na forma como imitavam meu sotaque", lembra.
Também nessa época, chegou a receber uma mensagem de um jornalista dizendo que ela nunca conseguiria chegar a lugar algum por ser gorda, preta e favelada. "Tinha 19 anos quando isso aconteceu e fiquei muito abalada", afirma.
Ali, mais uma vez, foi a força da sua "mainha" que a ajudou a resgatar sua autoestima. "Quem tem essa boca, esse olho, esse nariz? Quem tem essa alegria, a sua voz", disse Lícia à época, completando: "Ele ficou incomodado com o seu brilho."
Casada há 11 anos com Laís, a primeira morada de Ludmillah com sua mulher também foi na casa de Lícia, quando as duas tinham completado apenas dois meses de namoro. Ao saber da identidade sexual de sua filha, a reação de Lícia não podia ser outra: disse que estava ali para o que desse e visse, embora não tenha escondido o medo do preconceito. "Ela me pediu cuidado com as pessoas que acham que tem o direito de nos matar, calar ou silenciar somente por sermos gays ou lésbicas."
É pelo exemplo da mãe, que criou não só os filhos de sangue - quatro - com os de uma vizinha que faleceu —outros quatro—, que Ludmillah sonha hoje em adotar. "Quero uma menina, é meu sonho. Quero ser mãe adotiva como minha mãe foi de vários filhos", diz a atriz. "Não preciso parir para ser mãe."
E o que a motiva hoje nos palcos é também saber que o musical irá a Salvador e todo o povo do seu "gueto", em São Marcos, poderá vê-la cantar. "As meninas que acham que aquela é a única realidade possível irão me ver no palco e saber que elas também podem."
"Foi um choque de realidade assumii minha transexualidade"
Diva Menner, por sua vez, quando escolheu o que gostaria de dividir com o público, quis falar sobre algo que deveria ser comum a todas as mulheres, mas, para ela, segue sendo um momento de tensão: o uso do banheiro feminino. "O que para mim era um tabu, para outras mulheres era normal. As pessoas ficam sem entender algo tão simples", diz a atriz. "A gente não é aceita no banheiro feminino e no masculino. Já vi e vivi muitas situações de agressão e de assédio moral e sexual."
Falar de algo que deveria ser banal - mas não é - também foi um desafio: "Era difícil não me emocionar porque é triste você não poder ocupar um espaço que almeja, mas hoje consigo falar o texto naturalmente", explica.
Durante sua apresentação em Elas Brilham, ela canta "Uma Nova Mulher", de Simone, canção que se identifica desde pequena, mas que, durante muito tempo, evitou entoar na frente de seus pais. "Essa música me tocava muito e eu chorava escondido, sem poder demonstrar."
Agora, aos 38 anos, dividir a sua história com os outros, para ela, é também se deparar com muitas pessoas que acreditavam, até então, que ela era uma mulher cisgênero. Desde pequena, Diva precisou conviver com o incômodo de seus pais quando os conhecidos perguntavam se ela era menina e os dois precisavam responder que "não, não era". "Não me sentia igual a meus amigos que jogavam bola e nem aos amiguinhos afeminados. Me via como um patinho feio no universo e não entendia meu lugar", resume.
Quando decidiu contar à família, já com carteira assinada e trabalhando com música, disse primeiro ser gay, mesmo que soubesse que era trans. Assim, durante muito tempo, sem conseguir se relacionar com ninguém, lembra de ter se sentido como uma artista sem alma, "apenas uma voz".
Seu renascimento veio apenas em 2019, quando deu início à sua transição. Primeiro tomando apenas hormônios e, depois, com bichectomia, implante de silicone, e lipoescultura. O próximo passo será uma feminilização fácil, que pretende fazer ainda neste ano para poder deixar de utilizar os medicamentos que têm prejudicado o seu fígado.
Passar por esse processo, no entanto, não foi fácil. "Fiquei muito debilitada e foi muito importante ter minha mãe nesse momento porque me senti uma criança de novo, mas em um corpo meu, no corpo certo", diz. "Tomei também um choque de realidade quando decidi ser feliz e assumir minha transexualidade porque vi o quanto nosso país é preconceituoso."
Com dificuldade de trabalhar em diversos lugares, foi somente após participar do The Voice Brasil, em 2020, com a repercussão de ter passado pelo programa como a primeira mulher transexual, que sua carreira deslanchou. "Fui acolhida pelos lugares LGBTIQA+, passei a ser conhecida nesse nicho e caí nos musicais", ela comemora. "Quando você se olha no espelho e se reconhece, há um empoderamento natural e o universo conspira."
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