Topo

'Cadeia é pouco': o que é a castração química e por que gera tanta polêmica

A deputada federal Clarissa Garotinho - divulgação
A deputada federal Clarissa Garotinho Imagem: divulgação

De Universa, no Rio de Janeiro

15/09/2022 04h00

"Cadeia é pouco para estupradores e pedófilos. Queremos a castração química", defende a deputada federal Clarissa Garotinho (União Brasil-RJ) em sua campanha política ao Senado. Proposta já defendida também pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), o tratamento hormonal que tira a libido do homem é vendido como uma das soluções para reduzir índices de crime sexual, mas encontra resistências nos campos médico e jurídico.

Existem pelo menos dez projetos de lei pelo país sobre o tratamento. Alguns defendem que seja uma medida facultativa para diminuir a pena do condenado por crimes sexuais —e a decisão de se submeter ao tratamento é do próprio homem. Outros, como o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), afirmam que o procedimento deveria ser obrigatório em condenados por estupro ou pedofilia —doença em que a preferência sexual incide sobre crianças. Segundo a lei, quem pratica sexo com menor de 14 anos ou com pessoa que não tem condições psicológicas de consentir, é enquadrado como estupro de vulnerável, com pena de reclusão varia de 8 a 15 anos.

O que é a castração química?

A chamada castração química consiste em administrar substâncias com a finalidade de inibir ou reduzir a libido, a atividade e a excitação sexual, além da ereção temporariamente. Tradicionalmente, é utilizada para tratamento de disfunção hormonal na mulher e em casos de câncer de próstata no homem ou para punição. Importante ressaltar que o termo "castração química" não é médico. O correto é tratamento hormonal ou terapia antagonista da ação da testosterona.

Em outros países já é usada como prevenção de crimes sexuais recorrentes. Nove estados americanos aplicam a pena de forma facultativa para agressores sexuais e obrigatória no caso de reincidentes. Na Rússia ela é obrigatória apenas para os estupradores reincidentes, enquanto na França e na Inglaterra a castração é aplicada somente com o consentimento do condenado: ele escolhe se quer ser preso ou castrado quimicamente. Na América Latina, Argentina, Colômbia e México aprovaram a medida como meio alternativo à pena.

Para defender a pena, Clarissa e outros apoiadores da causa citam dados de pesquisas que falam que a reincidência criminal de abusadores sexuais de menores e estupradores que foram castrados quimicamente caiu de 75% para 2%. Nem Universa nem os médicos ouvidos pela reportagem localizaram a fonte nem os dados desse estudo.

Baseada nessa possível queda de reincidência em outros países, Clarissa defende que "se está dando certo no mundo todo, acho que esse é o caminho [para o Brasil]."

"É óbvio que eu preferiria que fosse obrigatório, mas há também a opção de receber a injeção da castração química para que o condenado tenha a liberdade condicional", afirma a deputada, em entrevista a Universa.

O que diz a lei atualmente

A castração química esbarra na Constituição brasileira: o texto de 1988 veta pena corporal, com base no princípio da dignidade humana. "Não haverá penas de morte, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento, cruéis [...]. É assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral."

A lei pode ser alterada por meio de uma PEC (proposta de emenda à Constituição), apresentada com o apoio de 1/3 dos parlamentares da Câmara ou do Senado, pelo presidente da República ou por mais da metade das Assembleias Legislativas.

Apesar de toda a polêmica que o tema provoca, Clarissa Garotinho insiste que o importante é discuti-lo.

"Eu não posso avançar muito mais nisso, porque é preciso passar pelo Congresso Nacional. O importante é a gente ter o debate para saber que é uma medida possível de ser aplicada. Eu tenho certeza de que a proposta é constitucional, tem aplicabilidade e dá resultado. Não dá para a gente ficar filosofando sobre as coisas e não pensar na resolução concreta dos problemas da vida das pessoas."

Legalidade e efeitos da 'castração química'

Além de questionar os dados da pesquisa, alguns especialistas afirmam que apenas a castração química não surte efeito se não for acompanhada de tratamento psiquiátrico e psicológico. "Mesmo sem ereção ou apetite sexual, o agressor pode causar violência física e lesões graves nas vítimas utilizando dedos, língua e objetos", afirma o médico-psiquiatra forense Paulo Sérgio Calvo, do Imesc (Instituto de Medicina Social e de Criminologia de São Paulo), que já trabalhou com acusados de estupro e presos da Casa de Detenção do Carandiru, em São Paulo.

Sobre a pesquisa citada por Clarissa, Calvo lembra que esses dados, caso sejam reais, podem não considerar apenas os resultados vindos da castração química. "Alguns criminosos abandonam a prática, Além disso, há países quem mantêm controle rigoroso do comportamento do réu após o término do tratamento."

O psiquiatra Danilo Baltieri trabalha há 23 anos com tratamento a pedófilos e também contesta a redução de quase 100% no número de reincidência no crime sexual. "Esse número é irreal. O que se provou eficiente é a junção da pena privativa de liberdade junto do tratamento, que não necessariamente envolve medicação hormonal."

Já o psiquiatra Marcelo Italiano Peixoto, especialista em Emergências Clínicas pela UFCG (Universidade Federal de Campina Grande), defende que o tratamento é, sim, uma possível intervenção para controle do transtorno parafílico, reconhece que reduz a reincidência do crime, mas também mostra preocupação com os efeitos colaterais, no caso de sexo consentido, por exemplo. "Às vezes, o pedófilo também tem desejo sexual por adultos e, com esse tratamento, ele já não poderia mais realizar esses atos sexuais, inclusive a masturbação", diz.

Além da discussão da eficácia ou não do tratamento, ainda que reversível, se aplicado em altas doses e por longo tempo ele pode provocar reações permanentes como diabetes, câncer de fígado, psicose e tumor no cérebro.

Lógica punitivista

Para além da questão médica, a advogada criminalista Letícia Lins e Silva, presidente da Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas, lembra que os crimes sexuais não estão vinculados à libido, mas sim ao poder. Sendo assim, somente um tratamento hormonal não seria a solução.

"Para combater a violência sexual é preciso trabalhar o papel do homem e da mulher na sociedade. A partir do momento em que há castração, o homem pode continuar praticando crimes, inclusive com objetos", diz Letícia.

O criminalista da USP João Paulo Martinelli complementa que além de o crime sexual não estar ligado à libido, o criminoso pode ter um transtorno ou mesmo ser inimputável, quando ele nem mesmo sabe o que está fazendo. Ou seja: não tem consciência de que o que fez é crime.

"Essa mentalidade punitiva de ódio só piora o problema. Fora que o Brasil é signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos, que proíbe medidas dessa natureza. Isso é entrar na lógica da opressão e da barbárie", analisa ele.

Membro permanente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB, a criminalista Mayra Martins Cardozo decreta: "Reduzir o estupro a uma lógica de satisfação sexual é ignorar todo o valor simbólico e político que está por trás da cultura desse tipo de violência". "Não é porque os nossos direitos sexuais e reprodutivos não são respeitados que resolvemos a questão retirando direitos sexuais e reprodutivos de quem nos agride."

Punição divide juristas

Professor de Direito Constitucional da FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas), Felipe Fonte diz que, se a castração for adotada como uma alternativa penal, ou seja, se a pessoa puder optar, como ocorre na França, não seria inconstitucional.

"Se a gente admite que as pessoas façam diversos tipos de tratamento invasivo, intervenções como tatuagem e até mesmo a mudança de gênero, isso [a castração] pode, sim, ser uma consequência da pena, e não uma imposição estatal. Tem que ser algo voluntário."

Já a juíza Andrea Rose Borges Cartaxo, de Pernambuco, entende que a castração química é constitucional, ainda que imposta. No seu entendimento, como nos casos específicos de crimes sexuais as penas são superiores a dois anos, não caberia aqui a escolha ao réu ou acusado a passar pelo tratamento. Seria, nas palavras dela, a criação de uma nova penalidade.

"A constituição veda penas cruéis, e a castração química, embora tenha esse nome que não é muito palatável, não é cruel. Ela é a ingestão de medicamentos que impedem a ereção, com efeito temporário, portanto totalmente reversível. Não é nada diferente da esterilização por anticoncepcional."