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'Virei policial após ver parente perder os dentes por apanhar do marido'

A policial civil  Ana Rosa Campos - Mariza Tuelher/Divulgação
A policial civil Ana Rosa Campos Imagem: Mariza Tuelher/Divulgação

Colaboração para Universa, em Porto Alegre

15/09/2022 04h00

Policial civil há uma década, Ana Rosa Campos, 35, de Manhuaçu (MG), guarda uma memória triste da infância: uma mulher de sua família, hoje com 68 anos, contando para a filha, aos 20, que tinha perdido os dentes porque foi agredida pelo primeiro marido e, por isso, usava dentadura. Ela prefere não identificar a parente para não expô-la.

"Ela era tão nova, tão bonita e não tinha dentes naturais porque foi agredida. O primeiro marido quebrou alguns dentes dela com soco e, depois, a levou no dentista e pediu que retirassem todos os dentes e fizesse uma dentadura", conta.

"Quando me contava tudo que sofreu eu me indignava muito, mesmo criança. Cresci com essa história." A policial, porém, fez da dor um propósito de vida.

"Queria trabalhar com a pauta de mulheres desde o curso de formação [para policiais] e me especializei nisso. São dez anos de polícia e dez que atuo no combate à violência doméstica". E Ana inovou de tal maneira que, no início de setembro, ganhou um prêmio nacional por seu trabalho de proteção a vítimas. "Consigo ajudar as mães de outras pessoas que poderiam passar pela mesma história."

Projeto premiado começou com celular emprestado

Especialista em violência doméstica, Ana se incomodava com a dificuldade que as moradoras da região de Manhuaçu tinham para denunciar as agressões que sofriam. De acordo com a ela, que é escrivã, vítimas de algumas localidades precisam se deslocar 80 km até chegar à delegacia mais próxima. "Tem as crianças para olhar, uma série de obrigações que impedem a ida. Se consegue ir, tem um fila enorme para ser atendida", diz.

Foi quando pensou em criar um projeto para que o atendimento fosse de casa ou que o horário pudesse ser agendado, para evitar tanta fila. O plano calhou com o início da pandemia, em março de 2020, e ela percebeu que o número de mulheres que conseguiam se deslocar até o atendimento caiu drasticamente. Surgiu, então, a ideia de criar um bot no WhatsApp para que elas pedissem ajuda.

Por conta própria, ela aprendeu a programar e criou o chatbot —um perfil no aplicativo de conversa que responde a perguntas automaticamente. Depois, mapeou as principais dúvidas das vítimas de violência de gênero, buscou uma linguagem simples e, com um celular doado por um colega, colocou o projeto para funcionar em abril de 2020.

Sem nenhum investimento do Estado, a iniciativa, batizada de Chame a Frida, em homenagem à artista Frida Kahlo, recebeu apoio de ativistas, Ministério Público e da própria comunidade.

Disponível 24 horas por dia, o Chame a Frida orienta vítimas, agendar horários para realização de medida protetiva e aciona a polícia para se dirigirem até a vítima em casos de emergência.

Hoje, a ferramenta está em 13 municípios de Minas Gerais, e o atendimento policial por WhatsApp virou um projeto de lei estadual, ainda em tramitação. A polícia ajuda no atendimento e encaminhamento das mulheres para os órgãos competentes. "Ficamos dois anos sem feminicídios na pandemia, isso era inédito na comarca. Temos muito orgulho de levar o atendimento até mulheres da zona rural que não contam com delegacias especializadas", orgulha-se Ana.

No dia 9 de setembro, o Chame a Frida recebeu um prêmio do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que celebrou iniciativas para garantir a segurança de mulheres e criança. A policial afirma que o reconhecimento é considerado "um Oscar" por toda equipe. "Essa é a nossa sexta premiação, mas a mais importante. Quando iniciamos, usamos os dados do fórum para justificar a implementação. A gente nunca imaginou que receberia um prêmio deles."

"Na polícia, já ouvi que meu trabalho é 'mimimi'"

"Trabalhar militando na área, sendo ativista, é difícil", diz Ana. "Muitos querem colocar que isso não é serviço de polícia, mas sim social. Para a maioria, serviço da polícia é apreensão de drogas, armas e prender bandido."

Segundo ela, muitos integrantes da corporação ainda dizem que violência doméstica é "problema de casal". "Já ouvi várias vezes que meu trabalho é "mimimi"." Mesmo assim, ela não desistiu dos seus objetivos e, hoje, é reconhecida nacionalmente pelo trabalho feito. "Acredito que ser mulher é, na concepção da palavra, ser forte. Não consigo escutar que alguma é fraca. É um contrassenso."