Topo

'Comecei a alisar o cabelo aos 5 anos; hoje, meu crespo é símbolo de força'

Victoria Sena: alisamento levou a corte químico do cabelo aos 10 anos - Arquivo pessoal
Victoria Sena: alisamento levou a corte químico do cabelo aos 10 anos Imagem: Arquivo pessoal

Janaina Bernardino

Colaboração para Universa, em São Paulo

17/09/2022 04h00

Se você é uma pessoa negra, provavelmente, em algum momento da sua vida, a palavra crespo já te causou arrepios. Historicamente, o cabelo afro foi desvalorizado, visto como um símbolo de primitividade e, portanto, fugia daquilo que é civilizado. Logo, classificado como algo ruim.

Eu, por muito tempo, fui a protagonista do papel da "neguinha" do cabelo "duro" e, no auge dos meus cinco anos, já alisava os meus cabelos para que fosse minimamente aceita. A expectativa era o longo e liso, e não tinha nada mais charmoso do que ter um cabelo tipo Rapunzel, sem nenhum fio fora do lugar ou armado. Esse papel, no entanto, eu nunca protagonizei, já que mesmo com toda química, os fios nunca atingiam o esperado.

Foram 13 anos de alisamento e, até pouco tempo, não me lembrava de como ele era depois de uma infância e adolescência inteira com vários protocolos de alisamento. Não conhecia sua espessura e curvatura e tampouco os cuidados necessários, resquícios de uma estrutura racista, que é programada para distorcer o modo como nos vemos no espelho e impor o padrão branco como o único a ser seguido.

Não é, inclusive, uma vivência isolada: muitas são as histórias de pessoas pretas que têm o seu ponto de partida racial pelo famoso 4abc —nomenclatura dada à curvatura do cabelo crespo.

Por outro lado, driblando o processo violento de embranquecimento, em 2012 nasce o movimento pela transição capilar, ou seja, deixar de alisar e permitir que os fios voltem ao seu estado natural. Neste cenário, o crespo passa de um "cabelo ruim" a uma ferramenta de promoção da autoestima negra e reforça, de maneira positiva, uma identidade que por muito tempo foi subjugada e pautada pelo olhar do outro. Hoje, ao escrever esse texto, vejo que tenho regado o meu cabelo, com mais carinho para que ele floresça assim, do jeito que é, armado e para cima.

Para a comunidade negra, o crespo é um símbolo importante de construção identitária e política, que aponta uma configuração de cenário, destacando a história africana, a verdadeira, não aquela contada apenas pela ótica do racismo e sofrimento. Na última quinta-feira (15), comemoramos o Dia Mundial do Cabelo Afro e, hoje, Universa traz relatos de quatro pessoas que se orgulham de seus cabelos crespo, contando como se sentem colocando o black power para jogo.

Alisamento provocou corte químico aos 10 anos

A publicitária Victoria Sena, 25, conta que, quando era mais nova, não tinha uma relação saudável com seu cabelo. O motivo? Ele não ficava liso, sedoso, com balanço e brilho, o que causava uma certa frustração. Assim como outras meninas negras, começou a alisar os fios ainda pequena como uma forma de "domar" o cabelo natural e alcançar o dos sonhos.

Além de toda química, Victoria conta que teve uma experiência traumática aos 10 anos, na 4º série, quando teve piolho e ao passar um remédio teve um corte químico —por causa da fragilidade dos fios decorrente do alisamento. "Foi horrível, não matou os piolhos, e o cabelo caiu todo na frente", relembra.

Longe da química há oitos anos, a publicitária, hoje, tem muito amor pelo seu black e levanta a bandeira do orgulho. "Meu processo envolve muito respeito, no sentido de não criar muitas expectativas de como eu quero que ele fique mas, sim, aceitar o jeito que ele quer ficar". Segundo ela, aproveitar ao máximo quando ele joga para o mundo o poder que tem, é uma honra. "Nada me abala naquele dia que eu gosto do jeito que meu cabelo está", diz.

"Meu cabelo carrega o DNA da minha família"

Fernanda Santana - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Fernanda Santana não alisou o cabelo, mas diz que recorria às tranças e estranhava o cabelo natural
Imagem: Arquivo pessoal

A estudante de psicologia Fernanda Santana, 21, driblou as estatísticas e nunca alisou o cabelo, seguindo um trabalho de base fomentado pelo seu pai, que sempre a incentivou a manter o cabelo natural. No entanto, mesmo com esse apoio, foi difícil fugir do olhar que coloca o crespo como antagonista da beleza, ainda mais quando as mulheres que ela tinha como referência não tinham o cabelo assim.

"Talvez por ter o incentivo do meu pai, lembro que não achava meu cabelo exatamente feio, mas quando tirava as tranças não conseguia me reconhecer no espelho, me sentia outra pessoa", conta. Fernanda, ainda destaca que a forma como as pessoas reagem ao crespo e, inclusive, ao colocarem a mão sem sei consentimento, contribui para a ideia de que deixá-lo natural é algo "fora do normal".

No entanto, acredita ser uma vitória quando arma o black, mesmo com comentários negativos, e aponta a importância da rede de apoio de outras mulheres negras. "Considero uma vitória tirar as tranças e conseguir me achar bonita com meu cabelo, além de dividir a experiência com outras mulheres pretas que também passam por isso."

"Aprender cuidados específicos é uma forma de autocuidado."

"Nada mais corrompe amor pelo meu cabelo natural"

A cabeleireira Lígia Martins - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A cabeleireira Lígia Martins
Imagem: Arquivo pessoal

A cabeleireira especialista em crespos e cacheados Lígia Martins, 46, conta que nunca ouviu um elogio sobre o seu cabelo e só foi sentir amor por ele depois de 30 anos. Foi um processo de dentro para fora, não linear, mas com muitas curvas. Foram três tentativas de concluir o tão esperado "big chop" ("grande corte", o último corte de cabelo antes da transição, que tira a maior parte dos fios alisados). Depois, o amor próprio renasceu junto com seu cabelo. "Hoje, nada mais corrompe meu amor com meu cabelo natural. Vivo tão segura que às vezes exagero no exibicionismo", conta, ao risos.

Com a parceria de sua filha, Maria, com quem tem a missão de pautar a liberdade crespa, nasceu o salão Tom da Beleza e uma marca própria, SOWA Cuidados, que tem feito um trabalho na autoestima de todos aqueles que passam pelo salão.

"Consigo, muitas vezes, ser exemplo para outras pessoas. Desde a avaliação até a finalização, mostrando às clientes a beleza do crespo como ele é, com sua textura sensível, delicada, macia e, ao mesmo tempo forte, potente, resistente, cheio de audácia, volumoso e exibido, ocupando o seu lugar, em todos os seus diferentes formatos e cores."


Estou trilhando um caminho próspero e de sucesso, fazendo o que toca meu coração: ajudar mulheres com seus crespos. É algo que me completa diariamente Lígia Martins, cabeleireira especialista em crespos e cacheados

Movimento pró-crespo também é coisa de homem

O estudante Péricles Hortênsia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
O estudante Péricles Hortênsia
Imagem: Arquivo pessoal

Há quem diga, que todo esse movimento de aceitação do cabelo natural não afeta significativamente o homem negro, uma vez que a única opção para eles seria a cabeça raspada --o equivalente ao alisamento para as mulheres.

Na infância, o estudante de jornalismo Péricles Hortênsio, 21, raspava o cabelo pela praticidade e porque, na sua família, sempre teve o discurso de que homem com crespo grande era feio. "Me acostumei a pensar assim. Hoje, uma nova relação com meu cabelo está sendo construída. Quando me olho no espelho, para mim é a coisa mais linda".

Para ele, o 4abc não é só estética, mas também uma forma de cuidar de si. "Às vezes estou triste e vou hidratar o cabelo. Instantaneamente me sinto uma nova pessoa", brinca.