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Caso Leandro Lehart: como é o tratamento de vítimas de violência sexual

Rita de Cássia Corrêa denunciou o músico Leandro Lehart por estupro e cárcere privado - Reprodução/TV Globo
Rita de Cássia Corrêa denunciou o músico Leandro Lehart por estupro e cárcere privado Imagem: Reprodução/TV Globo

De Universa, em São Paulo

19/09/2022 15h42

Rita de Cássia Corrêa, de 40 anos, mulher que denunciou o músico Leandro Lehart, do grupo Art Popular, afirmou que sua a vida, após o estupro, "é feita de dores psicológicas, físicas, de limitações". Ela falou pela primeira vez sobre o caso neste domingo (18) ao "Fantástico", da TV Globo. Leandro foi condenado a mais de 9 anos de prisão por estupro e cárcere privado e pode recorrer em liberdade. Ele nega as acusações.

Na entrevista, Rita conta eles tiveram alguns encontros e, em 2019, o músico a submeteu a situação violenta, com agressões, imobilização e cometeu um ato escatológico de violência. Após o episódio, ela disse que a vida desandou: Rita convive com sérios problemas emocionais, perdeu o emprego de controladora de acesso no metrô de São Paulo e tentou suicídio.

A psicóloga Mariana Luz, fundadora do Instituto Janete Costa, afirma que o relato de Rita indica um forte estresse pós-traumático. "Isso é uma das principais sequelas emocionais da violência sexual. Toda vez que vivemos um trauma muito profundo, ficamos com aquele eco dentro da gente relembrando essas experiências — as sensações, o medo, a ansiedade, a vergonha", diz.

Esses danos psíquicos também têm impacto no corpo. "Muitas vezes o estresse gera sensações físicas como palpitações, mãos suando, dor de estômago, dor de cabeça. Tudo isso porque a parte psicológica se conecta com a parte física quando a gente fala de trauma", explica.

"O estresse pós-traumático gera muitas vezes um medo muito grande e paralisante em relação ao futuro que se conecta com a ansiedade. Por ter vivido um trauma muito grande, ela pode ser muito impactada em relações com homens, achar que não vai poder mais se relacionar porque ela não pode mais confiar neles, por exemplo", diz. "E tudo o que leva fazer escolhas que causam restrições por causa de um trauma, para a psicologia é estar adoecido."

Não existem normas para tratamento das vítimas, diz promotora

A promotora de justiça Celeste Leite dos Santos, gestora do projeto Avarc (Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos) do MP-SP (Ministério Público do Estado de São Paulo), afirma que, hoje, o país não reconhece todas essas especificidades ao lidar com a vítima nem seus direitos.

"Não existe um tratamento sistêmico de um nenhum tipo de vítima, só o tratamento médico. Ela é tratada como instrumento de apuração de crime, não é feita estratégia de desvitimização", diz a promotora. "Ela é encaminhada para um acolhimento como forma de obtenção de prova para apurar o que aconteceu. Não há um reconhecimento dos direitos humanos das vítimas."

O Projeto de Lei 3.890/20, o Estatuto da Vítima, tem o intuito de defender interesses de quem sofre diretamente danos físicos, emocionais ou econômicos ao ser vítima de crimes, desastres naturais ou epidemias. O texto foi criado a partir das práticas implementadas por Celeste no projeto. Atualmente, o PL está em tramitação na Câmara dos Deputados.

O texto visa no acolhimento em três áreas: acolhimento, desvitimização e apoio. O projeto tem um capítulo especial que trata do acolhimento das vítimas em situação de vulnerabilidade, como estupro — que visa atuar em todas as fases do luto desse processo. "Não temos mais direto de atuar de forma amadora. Precisamos atuar de forma profissional para eliminar as sequelas desses episódios."

"O apoio tem que ser específico para cada situação. Com o estatuto, o Estado passa obrigação de oferecer apoio para cada vítima. Por exemplo, uma vítima de estupro precisa de apoio emocional, social e no âmbito da saúde, porque ela pode ter contraído alguma doença com a violência que sofreu", diz.

O objetivo é, esclarece a promotora, que tenha uma pessoa especializada em lidar com esse tipo de situação para que não haja julgamento e para que não se façam perguntas inadequadas a vítimas. "Por exemplo, se ela vai ao IML [Instituto Médico Legal], não é o caso de ficar questionando se ela consentiu ou por que ela vestiu de determinada forma. O projeto obriga a capacitação de todos agentes públicos, seja o Judiciário, médicos, enfermeiros, todos que atuam diretamente com as vítimas."

Celeste afirma que o país está atrasado neste tema. "Estatuto semelhantes já existem na Europa, como em Portugal, Espanha e França, que passou a incorporar o acolhimento das vítimas ao código de processo penal; na Argentina e Chile também, enquanto o Brasil está muito atrasado e não reconhece os direitos das vítimas — como o direito à informação, comunicação, tratamento profissional desde o primeiro contato."

Falta de atendimento especializado pode causar mais danos

Um atendimento mal feito só gera mais impactos, diz a promotora. "O processo penal só serve para o Estado punir, só se pratica com quem pratica o delito, a vítima não tem direitos ou garantias e, muitas vezes, a pena criminal não é a resposta à violação contra a dignidade que ela sofreu. Ela não ser devidamente acolhida gera consequências."

É o que também afirma a psicóloga Mariana Luz. É muito importante você também buscar um processo de ressignificação através de psicoterapia. "Ela precisa ser acompanhada e assessorada. Neste caso, a violência se tornar público dessa maneira pode trazer essa revitimização."

"O primeiro passo, quando uma vítima procura a imprensa, autoridades ou alguém da família, é perguntar como pode ajudar e saber o máximo de informações que pode acontecer de uma denúncia e sugerir acompanhamento, sempre a partir dessa pergunta. A vítima não tem noção do que vai acontecer após uma entrevista ou boletim de ocorrência. É muito importante que a pessoa que ela pede ajuda tenha acesso a essas informações para ajudar a devolver protagonismo dessa mulher."