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Burnout: gostar demais do trabalho pode levar ao esgotamento

O esgotamento nem sempre acontece com pessoas que se desapaixonaram pelo trabalho ou não seguem suas paixões.  - Delmaine Donson/Getty Images
O esgotamento nem sempre acontece com pessoas que se desapaixonaram pelo trabalho ou não seguem suas paixões. Imagem: Delmaine Donson/Getty Images

Glau Gasparetto e Thaís Lopes Aidar

Colaboração para Universa, em São Paulo

20/09/2022 04h00Atualizada em 20/09/2022 17h35

Após um plantão intenso de trabalho durante o Carnaval, a redatora Cristina*, de 25 anos, teve uma crise. Enquanto jantava com amigos, a jovem de São Paulo notou que estava mais inquieta do que o normal. Não conseguia ficar na mesa, irritada. Tinha se dado conta de que todos seus pensamentos cotidianos eram relacionados ao trabalho. "Levantava, ia para fora, chorava e voltava para dentro do restaurante. Senti desespero, falta de ar e um formigamento no corpo. Chegou a um nível que eu pedi para me levarem embora", descreve a redatora Cristina, que pediu para não ser identificada porque ainda lida com as causas e consequências do seu esgotamento.

Cristina só foi entender que era mais uma vítima do famoso burnout quando viveu essa experiência. Na época, uma das questões que a levaram à crise era trabalhar em ritmo intenso, sem receber o salário nos últimos tempos.

"Sempre fui uma pessoa muito prestativa, que topava tudo. Mesmo quando o cansaço vinha, acreditava que precisava aguentar, pois realmente gostava do que fazia. Confesso que até achava burnout meio 'nada a ver', porque sempre trabalhei bastante e pensava que o ritmo deveria ser assim mesmo. Até que a conta veio", conta.

Dizem que quem trabalha com o que ama nem sente que está trabalhando, de fato. Afinal, gostar do que faz tornaria qualquer rotina profissional mais leve e satisfatória. Só que, quando o assunto envolve carreira, também deveria ser resgatada aquela máxima de que nenhum excesso é positivo. Na verdade, amar demais o trabalho pode levar ao burnout.

O amor como gatilho

Amar a profissão, o trabalho e o cargo é o melhor dos mundos. O esgotamento nem sempre acontece com pessoas que se desapaixonaram pelo trabalho ou não seguem suas paixões. Algumas vezes, o problema está quando essa paixão se torna compulsão - daí o termo "workaholics", atribuído a quem trabalha tanto que não consegue se desligar da vida profissional.

Se você é particularmente apaixonado pelo seu trabalho, pesquisas mostram que você pode ser mais propenso ao esgotamento do que seus colegas menos entusiasmados. É justamente neste ponto que o amor passa a ser o combustível para atuar cada vez mais, ignorando quaisquer limites.

"É comum as pessoas deixarem de lado os sinais físicos e psíquicos do esgotamento. Muitas podem estabelecer uma relação excessiva e, sem perceber, cruzar os limites saudáveis de esforço e estresse profissional", explica o psicólogo organizacional Lucas Franco Freire, especializado em desenvolvimento de lideranças e autor do livro "Playfulness: trilhas para uma vida resiliente e criativa".

De acordo com a psiquiatra Malu de Falco, embora os estudos na área ainda estejam avançando, sem dados específicos, é possível afirmar que existem indivíduos com maiores chances de desenvolver a doença, o que tem sido observado, principalmente, na prática clínica.

"Os mais propensos são aqueles que estão expostos a altíssimas cargas de trabalho, pressão em ambiente laboral e carga horária dupla - ou, então, a uma jornada dupla de trabalho, sendo com o mesmo empregador, em vários empregos ou nas tarefas domésticas", afirma Malu.

As mulheres estão no topo dessa lista. Desde 2015, o termo "cansada", no gênero feminino, é mais procurado do que "cansado" pelos usuários brasileiros. Para complementar, nos últimos 12 meses, a pesquisa pela expressão "mãe cansada" também teve um crescimento abrupto no buscador. Seja pelo acumulo de jornadas seja pelas condições profissionais, a saúde mental das mulheres piorou mais que a dos homens nos últimos anos.

Segundo pesquisa divulgada em setembro de 2021 pelo Instituto Datafolha e feita a pedido da plataforma de saúde mental Zenklub, 68% das mulheres do país se sentiram sobrecarregadas com o trabalho durante a pandemia, contra 56% dos homens. Outra pesquisa Segundo uma pesquisa do Instituto FSB, feita a pedido da companhia seguradora SulAmérica e divulgada em novembro do ano passado, 62% das brasileiras afirmam que a saúde emocional piorou ou piorou muito durante a pandemia. Entre os homens, o índice dos que se disseram mais abalados com a experiência é de 43%.

A psiquiatra destaca a identificação de um aumento dos casos de burnout no período pós-pandêmico. "É um fenômeno que aumentou 100% desde 2017, sem contar a subnotificação", diz.

"Hoje faço terapia, mas continuo trabalhando bastante, porque minha vida não parou. Atualmente em outra empresa, pelo menos agora recebo em dia. Tenho bastante medo de ter burnout de novo, então, às vezes, desacelero, tento descansar mais. Parei um pouco de querer abraçar o mundo e de romantizar: é muito legal fazer o que a gente gosta, mas até certo ponto", afirma Cristina.

Acúmulo de estresse

O amor pela profissão levou Cristina* ao diagnóstico de burnout e isso não é um caso isolado, pois a doença não escolhe suas vítimas. "A síndrome de burnout ou 'síndrome do esgotamento profissional' é uma reação negativa ao estresse crônico relacionado ao trabalho. É consequência do acúmulo de estresse e tensões emocionais", explica o psicólogo organizacional Lucas Franco Freire, especializado em desenvolvimento de lideranças e autor do livro "Playfulness: trilhas para uma vida resiliente e criativa".

Ele explica que burnout é caracterizado em três dimensões principais, segundo o CID-11 (Classificação Internacional de Doenças), da Organização Mundial da Saúde (OMS). São elas:

  • exaustão da energia ou sensação de esgotamento;
  • descrença, cinismo ou negativismo e distanciamento mental do trabalho;
  • sensação de ineficácia ou falta de realização no trabalho.

Um dos caminhos para reconhecer e, sobretudo, diagnosticar a doença - atualmente considerada ocupacional - é saber reconhecer seus sintomas. De acordo com o psicólogo, essa manifestação pode acontecer em quatro campos diferentes: comportamental, físico, psíquico e defensivo.

Segundo Lucas, os sintomas de comportamento incluem irritabilidade, conduta negligente ou excessivamente cuidadosa, agressividade, incapacidade para relaxar, atitudes de risco e aumento de consumo de substâncias, entre outros.

Já os físicos se revelam com insônia, cefaleia, dores musculares, enxaquecas, perturbações gástricas, imunodeficiências, cardiopatias e distúrbios respiratórios, por exemplo.

Entre os psíquicos estão alterações na memória ou na cognição, baixa autoestima, mudanças de humor, sensação de insuficiência, paranoia, desconfiança e impaciência, enquanto as reações defensivas se revelam em reclusão, desinteresse, absenteísmo (comportamentos relacionados a faltas e atrasos no trabalho) e esquiva.

"Os pacientes sentem um forte sentimento negativo relacionado ao pensamento na atividade laboral e tentam se manter distantes disso, aumentando consideravelmente as taxas de presenteísmo", afirma a psiquiatra Malu de Falco. Por presenteísmo, entenda-se estar presente, fisicamente, mas com pensamentos bem longe das atividades profissionais.

A psiquiatra observa que, além da forte e comum sensação de esgotamento, a pessoa começa a se sentir incapaz de entregar as tarefas ou produzir, englobo aí, também, a Síndrome do Impostor.

Diagnóstico e tratamento

Segundo o psicólogo organizacional, o diagnóstico é feito por profissionais capacitados, como psicólogos e psiquiatras, através de entrevistas e análises do paciente. Uma vez que o burnout é diagnosticado, tem-se início o tratamento psicoterapêutico e, se necessário, psiquiátrico, com o uso de remédios.

"A terapia e o autoconhecimento são fundamentais para que o indivíduo conheça a si mesmo, os seus gatilhos de estresse negativo, seus limites pessoais e adquira repertório comportamental para dosar as cargas de estresse", observa o profissional.

Se o uso dos medicamentos for necessário, o acompanhamento passa a ser multidisciplinar, incluindo a observação psiquiátrica. Isso porque, na maioria dos casos, outras doenças podem vir juntas do diagnóstico inicial.

"Burnout pode ser um gatilho para outras condições psiquiátricas. Quando o diagnóstico é tardio, já traz consigo sintomas depressivos e ansiosos instalados, um desequilíbrio químico. Nesses casos, é preciso usar o remédio", argumenta a médica Malu de Falco.

Ainda de acordo com ela, além do acompanhamento psicoterapêutico e das possíveis medicações - sempre orientadas e supervisionadas pelo psiquiatra após avaliação individualizada -, outros métodos são recomendados, como meditação, atividade física e alimentação saudável, por exemplo.

Empresas têm responsabilidade

Por último, vale lembrar que, por se tratar de uma doença relacionada ao trabalho, empresas e organizações estão igualmente ligadas a essa condição e devem agir em prol da saúde mental, visando o bem-estar de seus funcionários e combatendo o adoecimento.

Nesse sentido, Malu resgata o resultado de uma pesquisa médica que aponta: cerca de 15% dos funcionários de uma empresa terão depressão em algum momento da vida.

"Olhar para isso é muito importante, porque o burnout vai aumentar o presenteísmo e diminuir a produtividade e, como consequência, afetar a economia, globalmente", conclui.