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Renner é condenada por transfobia e terá de pagar R$ 80 mil a funcionária

Jamilly Aragão de Brito, ex-funcionária da Renner, acusou a empresa de transfobia - Arquivo pessoal
Jamilly Aragão de Brito, ex-funcionária da Renner, acusou a empresa de transfobia Imagem: Arquivo pessoal

Ed Rodrigues

Colaboração para Universa, em Recife

22/09/2022 04h00

Jamilly Aragão de Brito, 31, passou por uma transição de gênero, mudando sua aparência por se identificar como mulher, enquanto trabalhava em uma loja da Renner em Recife. Até então, havia uma relação respeitosa entre empresa e empregado. Depois da transição, segundo ela, a rotina passou a ser de intolerância, agressões e desrespeito à sua identidade de gênero.

Ela, que ocupava o cargo de líder de merchandising visual, alega ter sofrido perseguição e diz que foi demitida após ser alvo de inúmeras discriminações. O caso foi parar na Justiça do Trabalho, que considerou a denúncia verdadeira e condenou o grupo a pagar uma indenização de R$ 80 mil à vítima por danos morais. A empresa pode recorrer da decisão.

Procurada pela reportagem, a Renner encaminhou nota na qual informa que não comenta processos em andamento, mas ressaltou que "tem uma política de direitos humanos e um programa de diversidade que buscam promover a inclusão de todos os colaboradores e colaboradoras, o que passa pela conscientização e capacitação da equipe como um todo, em prol da promoção de um ambiente respeitoso e justo".

"Fui proibida de ir ao banheiro feminino"

Em entrevista a Universa, Jamilly diz que, com o convívio com os colegas de trabalho e em meio a uma política "de inclusão" pregada pela marca, se sentiu à vontade para externar sua real identificação de gênero.

"Era uma empresa onde me sentia estável e muito acolhida. Comecei meu desenvolvimento profissional e, com menos de dois anos, fui promovida. E tinha um bom relacionamento com os companheiros de trabalho. Depois de um tempo, a empresa começou a falar de diversidade e oportunidades para diversos gêneros e para pessoas com deficiência. Aí vi uma oportunidade de ser quem eu era de verdade", conta.

A partir dali, ela iniciou um processo hormonal em segredo. Somente poucas pessoas próximas, tanto do convívio pessoal quanto na empresa, sabiam da transição. Então o ambiente profissional mudou, conta Jamilly, quando uma gerente, que não teve o nome divulgado, soube que ela se identificava como mulher.

"Ela começou a me excluir de todos os processos da loja e a me perseguir. Espalhou para os colaboradores que iria me demitir e que eu seria um problema para a empresa. Fui proibida de ir ao banheiro e ao vestiário feminino, as pessoas começaram a me tratar com indiferença. Isso tudo me fez desenvolver ansiedade e síndrome do pânico. Me senti um lixo. Nunca imaginei que passaria por essa situação", detalha.

Jamilly conta que entrou na unidade, que fica em um dos principais shoppings da capital pernambucana, em 2010. Em 2018, após todas as agressões, foi demitida sem uma explicação plausível. Ela classifica o desligamento como o último ato de transfobia da loja contra ela.

Colega de Jamilly na mesma unidade por um ano e nove meses, Júlio César da Silva, 31, confirma o relato dela Jamilly e diz que a perseguição "foi sentida por toda a equipe". Júlio lembra que as agressões verbais tiveram início assim que a gerente percebeu a funcionária passava pelo processo de transição.

"Ela deixou o cabelo crescer, tomava hormônio. E isso chamou a atenção da gerente, que dizia que Jamilly não poderia tomar aqueles remédios na empresa. Também passou a reclamar do cabelo dela e proibi-la de frequentar ambientes femininos da loja, como banheiros e trocadores", afirma ele, que trabalhava no setor de atendimento ao cliente.

"Eu mesmo presenciei a gerente reclamando que ela estava deixando o cabelo crescer. O cabelo dela sempre foi um pouco grande, mas essa implicância só começou quando a chefe ficou sabendo que aquilo era um processo de transição", diz.

Júlio conta ainda que Jamilly era o "braço direito" da supervisão e tinha ótimo relacionamento com os colegas de trabalho. A boa convivência era tanta que os colegas perceberam claramente que ela estava enfrentando problemas com a chefia.

"Ela era muito carinhosa com os colegas. E todos perceberam quando ela começou a ser deixada de lado, preterida de processos que antes tinham participação ativa dela. Isso a deixou muito triste, e os comentários entres os colegas sempre apontavam para essa discriminação que ela estava sofrendo", reforça.

Perseguição continuou mesmo após demissão

"Minha transição foi o único motivo. Eu tinha mais de 100 horas extras no banco de horas. Nunca me atrasei e nem coloquei atestados médicos, tinha um bom convívio. Não há outra explicação", disse.

Enquanto estava empregada, Jamilly não quis denunciar as agressões por temer represálias. Mesmo após a demissão, ainda manteve seu posicionamento. No entanto, ela ainda sentia a força da perseguição: a mesma gerente passou a proibir outros funcionários de saírem com ela, sob a alegação de que ela estaria processando a empresa.

"Foi quando decidi judicializar a denúncia. Levei todos os relatos à Justiça do Trabalho e consegui provar. Saiu a decisão a meu favor e eu vou ter minha dignidade de novo", comemorou.

Na decisão, a juíza Ester de Souza Araújo destacou que o Poder Judiciário não pode compactuar comportamentos discriminatórios em nenhum ambiente, muito menos no trabalho.

A magistrada continua reforçando que, em pleno século 21, "não há mais espaço" para essas situações, "tampouco em razão da orientação sexual". Neste caso, vale ressaltar, trata-se de identidade de gênero e não de orientação sexual —que diz respeito à atração ou à ligação afetiva por outras pessoas.

O advogado Sergio Pessoa, presidente da Comissão da Diversidade da OAB-PE (Ordem dos Advogados do Brasil de Pernambuco), explica que a decisão considerou os depoimentos comprovando uma série de violações aos direitos de Jamilly no processo de transição de gênero.

"Entre elas, destaco a mudança de comportamento da gestora, que ao tomar conhecimento a impediu de utilizar os vestiários e provadores de roupa femininos. No decorrer dos depoimentos foi comprovado que sequer o nome social dela foi respeitado. E, por fim, a conduta da empresa foi de isolar Jamilly após ela revelar a sua transição de gênero", disse.