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'Podia ser uma de nós', diz iraniana no Brasil após morte de jovem no país

De Universa, em São Paulo

23/09/2022 04h00

"Desde ontem, não consegui me comunicar com minha família pelo Instagram nem pelo WhatsApp, porque o governo do Irã restringiu a internet ao território nacional. Consegui falar com meu amigo em um chat de um aplicativo de astrologia. Ele se conectou à VPN [mecanismo que permite acesso anônimo à internet] para me mandar mensagem para dizer que está a salvo."

Esse é o relato da iraniana Khazar Masoumi, de 39 anos, que mora no Brasil desde 2017. Khazar morou no Irã até 2008 e hoje acompanha de longe os protestos em sua terra natal. Ela se sensibilizou, assim como suas conterrâneas, com a morte de Mahsa Amini, 22 anos, em 13 de setembro. A jovem estava sob custódia da polícia porque foi detida por usar um hijab (véu usado por mulheres muçulmanas) que deixava fios dos cabelos à mostra.

Mahsa tinha origem curda [um grupo étnico minorizado do Oriente Médio], assim como Khazar. "A notícia foi um desastre para nós todas. Faz 40 anos que essas violências estão acontecendo. Poderia ser qualquer uma de nós: eu, minha mãe, minhas amigas. Todo mundo poderia passar por isso", afirma ela, que se graduou em direito pela Universidade de Teerã e se especializou em Direito Internacional na França, antes de vir morar no Brasil.

"As mulheres curdas têm origem de resistência e de luta, o que inspirou esses novos protestos. Um grupo de mulheres convocou os protestos pelo Instagram e isso é muito inédito", diz. "Nos primeiros dias, todos estavam surpresos e impactados porque a maioria nas ruas eram mulheres, a maioria jovens."

Por causa da limitação da internet no país, Khazar está sem contato com a maioria das pessoas que conheço. "Até falar com meus pais está difícil", conta. Para ela, o governo faz isso para desencorajar pessoas e desmobilizar manifestações. "Isso é preocupante pois aumenta a violência policial", analisa ela. Já foram contabilizados ao menos 17 mortos no país desde o início dos protestos.

"Pelo fato de ela ser uma mulher curda, muitos grupos se uniram aos protestos: mulheres, grupos étnicos. Toda sociedade está sob opressão estatal", diz. "O protesto começou com as mulheres e conseguiu chamar a atenção de muita gente. Pela primeira vez, estou vendo mnifestações desde bairros nobres de Teerã, nas periferias de grandes cidades e até nas pequenas províncias", diz.

Feminismo e relação com uso do véu

Para ela, a nova geração de jovens feministas, nascida nos anos 2000, está mudando o olhar para a política. "Na minha geração que o feminismo não era pauta principal ainda. Por exemplo, minha mãe achava que, para trabalhar facilmente num ambiente masculino, bastava virar neutra, invisível, daria tudo certo. A questão das mulheres era não protestar para não ter dor de cabeça. Meu ensinamento era que, se na rua alguém falava algo, o que hoje a gente conhece como assédio, a gente deveria abaixar a cabeça."

"A não obrigatoriedade do véu não era prioridade: falavam que primeiro teria que resolver questões sobre a liberdade de imprensa dos grupos étnicos, o problema econômico", diz. "A primeira vez que uma amiga minha levantou uma placa numa manifestação que estava escrito 'não ao véu obrigatório', em 2013, ela foi considerada muito radical, disseram que era apenas uma pauta da classe média", fala.

Mas ela diz que, para as mulheres, esse assunto sempre esteve presente. "Não começou hoje, é um caminho muito longo", diz.

"Esse assunto sempre esteve no nosso dia a dia. Primeiro, o hijab virou tema de moda, a gente resolvia o problema da não obrigatoriedade vendo o véu como acessório, tornando-o mais bonito. Mas, nos últimos anos, houve muitos protestos individuais de mulheres postando suas fotos nas ruas tirando o véu momentaneamente. Teve um movimento chamado de Meninas da Rua Revolução e depois disso houve uma coragem na sociedade como um todo e cada dia era mais visíveis mulheres sem o lenço nas ruas", diz ela, que notou essa flexibilização na última vez que visitou o país, em julho deste ano.

Por isso, ela vê com muito otimismo as manifestações. "Agora estão com essa coragem incrível nas ruas, essas meninas que tiram o véu nas cidades, é lindo de ver a gente acreditava em uma outra força política."

O que está acontecendo no Irã

A morte da jovem Mahsa Amini, 22 anos, em 13 de setembro, fez despontar uma onda de protestos no Irã. Até esta quinta-feira (22), ao menos 17 pessoas foram assassinadas do país durante a repressão aos protestos. O governo não esclareceu a causa das mortes. Vídeos publicados em redes sociais mostram mulheres jogando seus hijabs em uma fogueira, cortando o cabelo, entre outras demonstrações que desafiam o regime.

Mahsa morreu após ser detida pela chamada patrulha de orientação, que tem sido traduzida pela imprensa ocidental como "polícia da moralidade". Ela estava sob custódia da polícia porque usava hijab (véu usado por mulheres muçulmanas) que deixava fios dos cabelos à mostra. A polícia nega agressões e afirma que Mahsa morreu devido a comorbidades. A família de Masha contesta a versão das autoridades policiais.

Nesta quarta-feira (21), o governo restringiu a internet do país, que agora só tem acesso entre território local e impediu o acesso às redes sociais. Além disso, o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, anunciou a criação de uma criação parlamentar para investigar a morte da Masha.