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'Eu, minha esposa e nosso cachorro moramos dentro de um carro nos EUA'

Casal se mudou do Espírito Santo para os EUA com medo de ataques racistas e homofóbicos - Arquivo pessoal
Casal se mudou do Espírito Santo para os EUA com medo de ataques racistas e homofóbicos Imagem: Arquivo pessoal

Fernando Barros

Colaboração para Universa, em Salvador

24/09/2022 04h00

Já imaginou chamar um carro de casa? Pois essa é a realidade da tatuadora Jéssica Simões, 31, e da esposa Marina Cruz, 29. De Vila Velha, no Espírito Santo, elas se conheceram em julho de 2015, casaram há três anos e, em novembro de 2021, se mudaram para os Estados Unidos, com medo de ataques racistas e homofóbicos sofridos no Brasil.

Lá, depois de uma breve passagem por San Francisco, Jéssica vive com a companheira em Los Angeles, na Califórnia, e, juntas, moram dentro de um Toyota Prius, modelo híbrido que funciona à combustão e de forma elétrica. Ao contrário do que muita gente pode pensar, Jéssica garante que a casa inusitada foi uma escolha, devido à liberdade de poder estar em vários lugares diferentes.

No veículo, que é alugado, elas têm tudo o que precisam, de forma adaptada: geladeira, ventilador, cama, mini forno, utensílios de cozinha e ainda dividem o espaço com o buldog francês Bartolomeu, o Bartô, que se juntou ao casal há cerca de um mês.

Nas redes sociais, a rotina de Jéssica e Marina em outro país e morando dentro de um carro faz sucesso e desperta curiosidade. Só no TikTok, são mais de 71 mil seguidores. A Universa, Jéssica contou um pouco da sua história. Leia o relato a seguir.

"Passei por muita discriminação no Brasil e decidi pedir asilo nos Estados Unidos"

Durante a minha vida toda, por ser uma mulher lésbica e preta, eu sofri muito com preconceito e isso fazia eu me colocar para baixo, me achar inferior às outras pessoas.

Depois que eu conheci Marina, ela foi me mostrando que eu não precisava viver assim e aí realmente pude me aceitar e começar a ser eu mesma. No entanto, depois que o atual presidente do Brasil ganhou as eleições em 2018, ficou mais difícil continuar no país.

Jéssica Simões e Marina Cruz: o casal se mudou do Espírito Santo para os EUA com medo de ataques racistas e homofóbicos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Jéssica e Marina estão casadas há três anos
Imagem: Arquivo pessoal

Antes, o que era cometido às escondidas passou a ser feito de forma escancarada e tudo isso me trouxe medo. Sofri diversos ataques de racismo, homofobia e comecei a registrar tudo. Qualquer coisa que acontecia comigo, eu fazia um boletim de ocorrência, para me proteger e proteger minha companheira.

Com o passar do tempo, conversei com ela e confessei que estava cansada do preconceito que vivíamos e que eu não queria mais sentir medo. Começamos a pesquisar sobre vir para os Estados Unidos, inicialmente como turistas, e depois entrar com pedido de asilo [forma de proteção concedida nos EUA a pessoas perseguidas ou que temem sofrer perseguição em seus países de origem devido à raça, religião, associação a um determinado grupo ou opinião política].

Desse modo, viemos para os Estados Unidos com visto de turista em novembro de 2021 e, assim que chegamos ao país, peguei tudo que eu tinha reunido de prova e entrei com o processo para obter o asilo.

Atualmente, o processo está em andamento e sabemos que é longo, mas vamos até o final porque queremos nos estabelecer aqui, ter nossos filhos e realizar nossos sonhos. Agora em setembro, recebemos a carta de biometria para ter nossos documentos enquanto corre o processo.

Planejamento para a mudança e adaptação

Em 2021, comecei a tatuar e comecei a juntar dinheiro. Fiz um cálculo de quanto eu precisava para vir para os Estados Unidos e, me baseando nisso, marquei meus atendimentos. Não tínhamos nada em caixa. Todo o dinheiro que trouxemos para cá veio do trabalho com tatuagem. Em dois meses, consegui juntar 30 mil reais. Eu fiz uma promoção de cinco tatuagens por 250 reais. Minha meta era atender dois clientes por dia, totalizando 500 reais, e assim foi feito.

É muito engraçado eu falar sobre isso agora, porque eu lembro que eu fiz essa conta na minha cabeça e parecia algo impossível, mas eu tinha que fazer dar certo. Era a nossa única opção para sair do país.

Chegamos aqui com uma mala pequena, duas mochilas e muitos sonhos na bagagem. Inicialmente ficamos em San Francisco, onde fomos recebidos por um casal e somos 100% gratas a eles, que foram fundamentais nessa mudança. Eles nos ajudaram a arrumar trabalho e alugar um carro na cidade.

No entanto, não nos adaptamos a San Francisco, que faz muito frio, e decidimos fazer um teste em Los Angeles durante um final de semana. Como não queríamos gastar com hotel, dei a ideia de dormirmos no carro que havíamos alugado.

O dia a dia morando no carro

Chegamos na quinta, ficamos até o domingo e foi aí que nos descobrimos. A gente se sentiu completa morando dentro de um carro e, quando voltamos para San Francisco, já voltamos com a ideia de ir de vez para Los Angeles tornar essa experiência algo permanente.

Para morar dentro de um carro, compramos tudo que uma casa precisa. Começamos a decorar com plantas artificiais, luzes, geladeira, um mini forno, ventilador, compramos colchão de casal. A gente não sente falta de nada. Nosso carro é a nossa casa. Eu sempre digo que a experiência que estamos tendo é única e a gente só vive isso porque nos permitimos.

Além disso, nós pagamos um plano mensal de uma academia daqui que dá direito a tomar banho. Com a chegada do Bartô, Marina toma banho à noite e eu tomo banho pela manhã. Temos também um porta-xixi de camping para necessidades fisiológicas mais urgentes.

Nosso principal gasto hoje é o carro. Colocamos gasolina a cada 2 dias. Para encher o tanque do carro, gastamos 60 dólares. Depois disso, o maior custo vem com comida, porque compramos em restaurantes. É sempre bom também ter uma reserva financeira porque nada pode acontecer com o carro, já que ele é a nossa casa.

Por exemplo, passamos por um perrengue este mês. A bateria parou e o carro não quis ligar. Foi a única vez que tivemos medo porque, além da gente, tem o Bartô, mas trocamos a bateria e o problema foi resolvido.

Agora estamos juntando dinheiro para comprar nosso motorhome até dezembro para sair viajando. Queremos conhecer todos os estados daqui dos Estados Unidos e visitar todos os parques nacionais.

Nossa vida incentiva outros brasileiros que vivem por aqui e não tinham essa coragem. Conhecemos três pessoas que começaram a morar no carro depois que passaram a seguir a gente nas redes sociais, e isso deixa tanto eu quanto Marina muito felizes.

"Moramos no carro por opção, por ser nosso estilo"

Eu sempre falo que a nossa casa é pequena, mas o quintal dela é enorme. A gente dorme onde a gente quiser: se a gente quiser dormir no mato a gente dorme, se a gente quiser dormir em frente à praia, a gente dorme. Quem tem isso dentro de uma casa? Poder dormir em qualquer lugar que quiser? Ninguém.

Nos Estados Unidos muita gente opta por viver dessa forma e não é por falta de dinheiro. Há várias ruas com pessoas que vivem esse mesmo estilo de vida e sempre optamos em dormir em locais que tem outras pessoas dormindo. O engraçado é que muitos acham que quem faz isso são os imigrantes, mas não. A maioria é de americanos.

Acredito que eles aprenderam sobre liberdade bem antes da gente. O Brasil precisa muito entender sobre isso. Aqui é comum e esse modo de vida é respeitado.

Já por outro lado, se eu posto um vídeo na minha rede social, vários brasileiros comentam coisas do tipo 'saíram do Brasil para virar mendigo nos Estados Unidos'; 'Esse é o sonho americano?', se referindo a morar no carro, e por aí vai.

Muitas pessoas julgam, inclusive a nossa própria família, mas o que deveria importar é que estamos felizes, muito felizes. E casa vai além de paredes. Casa é onde você encontra a sua felicidade e a gente encontrou a nossa dentro de um carro.

Temos acumulado diversos aprendizados nesse tempo. Por exemplo, aprendemos diariamente que precisamos dar valor a pequenas coisas. Que ser é muito mais importante do que ter. Que ser livre custa caro, mas que vale a pena abrir mão de certas coisas em busca dessa liberdade. Entendemos que nem tudo que é bom para você é bom para mim e aprendemos que aceitar é diferente de respeitar. A única coisa que queremos é que respeitem nosso estilo de vida."