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'Estou otimista. Se ficar pessimista, eu vou surtar!', diz Anielle Franco

Giuliana Bergamo

de Universa, em São Paulo

26/09/2022 04h00

Às vésperas das eleições que prometem ser decisivas para o futuro da democracia do país, Anielle Franco está otimista. "Se ficar pessimista, eu surto", diz a professora, escritora e fundadora do instituto que leva o nome de sua irmã, a vereadora Marielle Franco. "Vai dar certo, a gente vai passar essa fase, ele vai entregar a faixa se realmente não for reeleito, não vai ter golpe, o Lula vai estar vivo até o final", completa.

Em 14 de março de 2018, Anielle perdeu a irmã, morta com cinco tiros na cabeça. Até hoje, um dos crimes mais graves da história da política brasileira continua sem solução. Na noite do assassinato, Anielle foi a única pessoa da família a se dirigir à cena do crime. Como contou em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, logo que chegou, enxergou a mão de Marielle para fora do carro, pendurada e com sangue escorrendo. Ao voltar dali, encontrou o pai, a mãe e a sobrinha em um estado tão dramático que temeu pela vida deles também. Felizmente, elas e ele não sucumbiram. Pelo contrário, transformaram, como gostam de dizer, o luto em luta. Um combate protagonizado por Anielle, que meses depois fundou o Instituto Marielle Franco.

Na semana passada, no palco da Casa Natura Musical, em São Paulo, ao receber o troféu pela vitória hors-concours do Prêmio Inspiradoras 2022 por seu trabalho em defesa da democracia, ela relembrou o episódio.

"Quando encontrei minha irmã com cinco tiros na cabeça naquele carro, eu podia ter escolhido muitos caminhos. Caminhos mais fáceis ou não, mas acreditei que podia ajudar a inspirar e protagonizar mulheres negras através e a partir da luta da minha irmã. Aqueles tiros não seriam em vão."

Não foram. Nos últimos dois anos, o instituto tem sido um importante ator no combate à desinformação, na luta por justiça e, sobretudo, na defesa das mulheres negras na política. É vida inteligente germinando em um dos períodos mais inóspitos da história da República no Brasil. Ou "um farol de resistência pela salvaguarda da democracia e defesa dos direitos humanos das mulheres", como disse a pensadora e ativista Sueli Carneiro, em vídeo enviado para ser exibido no evento.

Mas resistir também cansa. Desde o início do ano, Anielle pegou mais de 40 voos, grande parte deles internacionais. Viajou a trabalho, para participar de eventos e outros compromissos relacionados às pautas do instituto. Esteve, por exemplo, nos Estados Unidos, para uma homenagem feita por mulheres negras à sua irmã, e em Genebra, para participar da mais recente Revisão Periódica Universal (RPU), no Conselho de Direitos Humanos da ONU.

A entrevista a seguir foi concedida dias antes da premiação, quando Anielle ainda não fazia ideia de que seria homenageada. Por videoconferência, ela conversou com Universa durante os poucos dias de férias que tirou para descansar com a família. Enquanto falava, acompanhava com os olhos o movimento do marido e das filhas, Mariah, 6 anos, e Eloah, 2 anos, pelo ambiente. Nos últimos momentos da entrevista, não escapou de colocar as meninas no colo.

UNIVERSA: Como era sua vida antes da morte da sua irmã?

Eu era professora de inglês. Na verdade, eu morei fora, nos Estados Unidos, por 12 anos, jogando vôlei. Para isso, meus pais e minha irmã faziam muitas coisas no Rio para poder me ajudar. Elas ficaram anos vendendo sacolé, roupa, sapato na feira pra que eu pudesse estar lá. Eu fui aos 16 anos para passar só dois anos. Mas acabei ganhando os dois campeonatos, me ofereceram outras bolsas e eu fui ficando. Fiz duas faculdades e dois mestrados lá fora: inglês e jornalismo. Em 2012, voltei para o Brasil, porque reduziram a bolsa. Nessa época, a Mari começou a falar do desejo de ser candidata a alguma coisa. A gente sempre foi muito politizada, meus pais sempre foram de falar tudo, explicar eleição, impeachment do Collor. Minha mãe sempre trabalhou e estudou muito, então ela passava muito isso pra gente. Quando a Mari morreu, eu era professora de inglês, dava aula em cinco escolas. E aí me mandaram embora falando: olha, a sua imagem é muito forte agora, a gente não quer mais você aqui. No final de 2018, eu me vi praticamente desempregada, eu trabalhava em duas escolas só, meu orçamento caiu muito.

Foi aí que você começou a se preparar para o segundo mestrado?

Sim, eu comecei a ler muito em 2018 depois que mataram a Mari. Eu lia sobre feminismo negro, sobre a questão racial. Quando a Mari estava viva, ela passava para a gente a visão dela, de dentro da câmara. Então, num almoço de domingo, por exemplo, a gente sentava lendo jornal ou assistindo a alguma coisa, e, ali, a gente tinha aquele panorama contado por quem estava por dentro. Mas teoria, não. Eu fui entender que muitas mulheres negras já passaram por muita raiva como eu passei, por perdas de seus entes queridos, lendo Audre Lorde e Sueli Carneiro. Eu comecei a buscar essas temáticas. Primeiro para o mestrado, porque eu queria falar da Mari e do Instituto no mestrado. A minha dissertação foi sobre isso. E segundo porque eu estava lidando com o tema memória. Eu queria arrumar uma maneira de deixar a memória dela viva e fazer com que as pessoas entendessem que a gente pode fazer memória sem as mulheres estarem mortas, sabe? Um dos quatro pilares do instituto é a memória.

E a ideia do instituto, como surgiu?

Eu tive um encontro e um convite para ir em 2019, para a Califórnia para falar sobre a minha irmã junto à esposa da Angela Davis, Gina Dent. E, aí, nesse encontro, em que a Angela também estava, elas começaram a falar que eu precisava tomar conta do legado da minha irmã também, principalmente para as mulheres negras. Disseram para eu fazer alguma coisa, criar uma fundação, uma ONG, algo assim. Aquilo foi ficando forte na minha cabeça. Volto, então, para o Brasil no mesmo avião que Lúcia Xavier, que é a diretora de Crioula. A Lúcia falou: eu vou te ajudar, vamos nos reunir com as mulheres negras no Rio, vamos pensar no que a gente vai fazer e você vai criar um instituto. E assim começou. Eu passei 2019 inteiro movida de muita raiva, confesso. Só que eu tinha que fazer alguma coisa com a minha raiva. Então eu entro para o mestrado de relações etnico-raciais no Cefet-RJ (Centro Federal de Educação e Tecnologia do Rio de Janeiro). Terminei o mestrado, mas, ao mesmo tempo, comecei a ficar mais próxima das mulheres negras com que a minha irmã já tinha amizade, para criar o instituto.

Uma das frentes do instituto é o combate à desinformação, sobretudo ao que diz respeito ao caso Marielle. Só que as fake news são uma praga. Qual é o caminho adotado pelo instituto?

A gente tem feito coisas muito pontuais. Criamos, por exemplo, um site da Mari, que a gente compartilha bastante. Usamos muito as nossas redes para nos comunicar, pedimos muito a ajuda de parceiros também. Mas tem uma coisa que eu particularmente tenho feito que é? no começo de tudo isso, quando mataram a Marielle, eu mesma respondia (aos ataques). Agora, não. É diferente. Por exemplo, se a gente consegue um espaço na mídia, como em Universa, a gente usa para explicar a verdade. Eu escrevo para Ecoa, né? E eu escrevia e as pessoas que me xingavam. Aí um dia eu falei, não é possível! E, como resposta, fiz um texto me apresentando. A gente faz isso com fake news, a gente combate dessa maneira. Porque, se eu fosse retribuir todo o ódio que eles fazem com a gente, eu faria igual a eles. Não é o que eu quero. Então a gente mostra empatia, a gente mostra amor, humanidade, a gente explica o que são direitos humanos, que a Marielle morreu com cinco tiros na cabeça e que ninguém merece morrer assim, não importa de quem você seja devota, você não merece esse tipo de morte.

Eu entendo e pessoalmente concordo que é um bom caminho este de combater o ódio com empatia, mas o ódio é um sentimento humano talvez dos mais primitivos que existem e, quando ele brota, é muito difícil conter imediatamente. Como é o ódio em você? Como ele brota e como você, Anielle, o combate? Porque eu imagino que, mesmo hoje, você deve sentir algo assim quando recebe algo escabroso, não?

Sim! Veio muito no começo. Eu não sei se cheguei a sentir ódio, mas raiva eu tive muita e é muito próximo. Quando batiam [virtualmente] em mim, eu procurava escrever. Acredite ou não, o meu instagram, no começo, era tomado de raiva. Eu tinha que colocar pra fora, então aquilo me acalmava. Mas, ao mesmo tempo, eu procurava fazer coisas paralelas a isso, fora da militância, entre aspas, vamos dizer assim. Por exemplo: estar com as minhas filhas, estar com a minha família, fazer alguma coisa que me fizesse sentir muito bem, como jogar vôlei, viajar. Quando o ódio vinha, eu tentava não dar muita atenção àquilo, porque, muitas vezes, o ódio não vinha só de pessoas que eu não conhecia. Às vezes vinha de pessoas que conheceram a Mari e que nos ignoravam porque sabiam que a família estava passando por um momento difícil, mas nunca sequer passaram a mão no telefone. As pessoas usavam toda a imagem e o legado da Marielle e se aproveitavam daquilo. Acho que eu tive ódio igual ou maior por elas.

Hoje em dia isso não acontece?

Acontece, acontece muito. Principalmente agora. Época de eleição é mais difícil, né? Acontece de tudo. Às vezes parece que a Marielle é a própria candidata. A Marielle está morta! Muita gente fala 'Marielle presente', o presente eu até consigo aceitar, e a minha família também. Agora, quando falam 'Marielle vive', é muito difícil, porque ela está morta, sabe? Eu entendo que ela vive em algumas coisas, mas é difícil. Eu entendo defender a Mari, entendo lutar por justiça, eu entendo pedir justiça por ela, mas é muito duro a gente ver o outro lado enquanto família. Às vezes não tem respeito nenhum pela imagem dela.

Além do uso político, a imagem da sua irmã tem sido usada à exaustão quase como um símbolo pop. Quer dizer: eu sou cool se eu tiver uma camiseta 'Marielle presente'. Eu sou cool se eu tirar uma foto ao lado de um muro na rua com o rosto da Marielle pintado. Como você, a irmã da mulher que foi assassinada, não a pessoa pública, se sente ao ver a imagem da sua irmã tão instagramável?

Olha, no começo, eu tomava um susto com tudo, desde ver canecas sendo vendidas, camisetas, cadernos, canetas? Depois eu comecei a entender o tamanho do que ela estava se tornando. E virou uma coisa que a gente também não tem mais controle. Passou das mãos da família. Algumas pessoas falam pra mim: olha, a gente tá vendendo aqui coisa da Marielle, vocês permitem? Mas são raras as pessoas que fazem isso. Raras! Então eu comecei a não ficar tão incomodada. Aí veio uma praça em Paris, um jardim, uma placa em Buenos Aires? Aí entendi que muitas pessoas se reconheciam nela enquanto força de luta. E pensei: não adianta ficar chateada com isso. Tem horas que bate uma coisa do tipo: poxa, a pessoa podia ter falado alguma coisa com a gente! Mas ela se tornou esse símbolo gigante que vai além de tudo isso.

Alguma dessas vendas é revertida para o instituto?

Foram raras as pessoas que falaram assim: eu vendi tal coisa e vou doar o dinheiro para vocês. Aconteceu, sei lá, duas ou três vezes talvez. Mas penso que, assim como vendem Angela Davis, Martin Luther King, Conceição Evaristo, tem coisa que não dá para a gente controlar.

E o próprio instituto não vende nada?

Não, ainda não. Temos esse projeto, mas ainda não conseguimos uma logística que desse conta, porque nós somos 10 pessoas.

Estamos a poucos dias do primeiro turno de uma das eleições mais tensas e importantes da história do país. Quais são suas expectativas? Você está otimista com nosso futuro?

Eu estou otimista porque, se eu ficar pessimista, eu vou surtar. Eu estou com medo, estou receosa porque acho que eles jogam muito sujo, muito baixo com tudo. Essa polarização que está crescendo, como a gente já falou aqui, está trazendo ódio, morte, as pessoas não podem comemorar o aniversário com o tema que quiserem que agora morrem. Mas, ao mesmo tempo, tem um lado meu que está otimista e pensa assim: vai dar certo, a gente vai passar essa fase, ele vai entregar a faixa se ele realmente não for reeleito, não vai ter golpe, o Lula vai estar vivo até o final, de boa. Mas, ao mesmo tempo, eu tenho receio, sim. Mataram a minha irmã e, até agora, a gente não sabe o porquê. Essa coisa que aconteceu com a Cristina [Kirchner] na Argentina. É assustador o que a gente está vivendo. Ao mesmo tempo que eu sou otimista, tenho bastante receio.

Você tem medo por você e sua família?

Tenho muito. Eu nem acho que a gente seria alvo, não. Eu tive ameaças que eu brinco falando que são ameaças bobinhas. E ataques na internet iguais aos que a Marielle recebia quando foi eleita, do tipo: macaca, merece tomar cinco tiros na cabeça também. Então eu tenho medo, sim. Hoje a gente não tem mais rotina como tinha antigamente. Primeiro por conta da minha filha. Mas também por segurança. A gente evita algumas coisas que eu faria antes. Sete de setembro com a coisa do Lula. Se não tivesse ninguém, eu andaria de vermelho, de PT? Agora não sei, porque eu fui xingada com Mariah no colo, quando ela tinha dois anos. Imagina agora?

Você foi xingada onde?

Eu fui xingada no Norte Shopping, em 2018, saindo do trabalho, saindo da escola com minha filha, ele tinha acabado de ser eleito, naquela segunda-feira, depois do resultado da eleição. Eram quatro homens, dois mais novos e dois mais velhos, com a camisa dele inclusive. Eles me reconheceram e falaram: é isso aí, agora o fulano está no poder, feminista de merda! E me cuspiram na cara. Eu recebi xingamentos, por exemplo, eu estava no aeroporto, o cara passou por mim e falou: feminista de merda, a tua irmã morreu foi tarde. Eu continuei andando, eu estava sozinha. Já aconteceu de eu estar em palestras, por exemplo, e precisar sair escoltada. Outro exemplo: eu estava indo agora para Miami, na semana da motociata, e o meu bluetooth estava ligado, eu estava ouvindo alguma coisa. E chegaram várias mensagens pelo Airdrop. Uma delas era uma foto de um meme da Marielle e outro da Dilma pra mim. Eu fechei, mas muito provavelmente essas pessoas viajaram comigo.

E suas filhas percebem isso?

A Mariah não lembra de nada. Ela tinha 2 anos? Nesses outros momentos, elas não estavam comigo.

Você poderia citar três ações que são fundamentais para o Brasil manter a democracia, seja qual for o cenário político de 2023?

Acho que a primeira seria combater o racismo de um modo geral, estrutural, institucional, tudo, o que vai demorar muito tempo para a gente conseguir. Aí, dentro desse combate ao racismo, combater também a violência às mulheres negras, porque elas estão no topo de tudo: de violência, de fome, de assédio, várias coisas. A segunda é ter ministério, estados, governos, prefeituras, estruturas paritárias. Porque está difícil, os caras cismam em querer dizer e ditar regras sobre os nossos corpos. E a última seria a questão da educação. Eu, professora, todo o meu histórico vem da base, sabe? Educação com livros em que as pessoas conseguissem se sentir representadas, onde educação fosse realmente valorizada no país, não só para os alunos, mas para os professores. Eu passei anos ganhando bem precariamente, eu sei o que é.

Quem te inspira e o que te inspira? São duas perguntas diferentes: coisas que te inspiram e pessoas que te inspiram.

Eu sempre fui muito movida e inspirada pelas mulheres da minha família como um todo. Então, se eu tivesse que falar quem me inspira hoje, definitivamente seria minha mãe e minha irmã. Eu tive uma avó muito politizada, mas eu não a conheci, infelizmente, eu só ouvi histórias dela. Ela tentou ser vereadora, inventou uma pasta para o cabelo das mulheres, muito antigamente, para alisar o cabelo das mulheres lá no nordeste, em João Pessoa. Ela era a mulher que fazia a melhor pamonha, que os prefeitos e governadores iam lá para comer. Tem várias histórias da minha avó materna que me inspiram muito.

E o que te inspira?

São muitas coisas, mas, quando eu percebo que eu estou fazendo a diferença para alguma coisa, ou que posso estar colhendo conhecimento para fazer a diferença de alguma coisa, isso me inspira. Então, por exemplo, quando eu escrevo um livro, ou quando eu estou lendo, quando eu consigo falar e fazer a diferença com outras mulheres, isso me inspira muito também. Estar com mulheres mais velhas me inspira. Por exemplo, estar com Lucia Xavier, quando eu sentei à mesa, pela primeira vez, estávamos eu, Sueli Carneiro, Angela Davis, Jurema Werneck, Lucia Xavier. Aquelas eram pessoas que eu só via nos livros que eu lia antes de matarem a Mari. Depois desse evento da Califórnia em 2019, a Angela Davis veio para o Brasil e falou: eu quero ser recebida por você. E ter ficado com ela? Eu que a peguei no aeroporto, levei para tomar caipirinha? isso foi inspirador! Me faz saber que eu estou do lado certo da história. E saber que tem mulheres que me inspiravam antes e que agora me olham como exemplo? Tipo, a Sueli Carneiro olha pra mim e fala: que incrível o que você está construindo com o instituto! Eu acho que isso me inspira a seguir lutando, a continuar, mesmo com todo o cansaço, mesmo com todos os 40 voos, mesmo ficando longe das meninas às vezes. Acho que é um pouco disso.

O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. O foco está nas seguintes causas: enfrentamento às violências contra mulheres e meninas e ao câncer de mama, incentivo ao avanço científico e à promoção da equidade de gênero, do empoderamento econômico e da cidadania feminina.