Gordofobia não é crime, mas cabe indenização: 'Já venci 8 processos'
Mais de 60% da população no Brasil é considerada gorda ou obesa segundo o Ministério da Saúde, e 8 em cada 10 pessoas sofrem preconceito por causa disso, conforme levantamento da SBEM (Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia) e da ABESO (Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica). Por isso não raro há pessoas consideradas gordas entrando na Justiça -e ganhando causas- por gordofobia.
O preconceito contra pessoas gordas não existe no código penal para ser considerado crime, mas todo aquele que tem seu psicológico abalado por ofensas, bem como os direitos da personalidade atingidos, como o nome, a honra e a intimidade tem direito à indenização por danos morais. Ou por injúria.
O site Jusbrasil reúne hoje 66 menções à gordofobia. E levantamento recente do Estadão informa que o TST (Tribunal Superior do Trabalho) registrou aumento do número de ações de pessoas contra empresas por causa desse preconceito. Até meados de agosto último, havia 1.414 processos tramitando na Corte, dos quais 328 deram entrada nos últimos dois anos.
"Venci oito processos por gordofobia"
A dançarina e criadora de conteúdo digital Thais Carla já ganhou todos os oito processos recebidos pela Justiça contra seus detratores, entre eles o humorista Léo Lins, condenado a pagar R$ 5 mil por usar a imagem dela indevidamente e também por publicar um vídeo divulgando seus dados pessoais.
Recentemente, Thais Carla ganhou também uma ação na Justiça da Bahia contra o apresentador Danillo Gentilli. Ele foi condenado a pagar R$ 3 mil após utilizar fotos dela sem autorização no Twitter, com frases preconceituosas e gordofóbicas. Há ainda mais 7 processos tramitando na Justiça contra pessoas que falam de seu peso de forma pejorativa.
A Universa, Thais Carla conta que quando começou a receber ataques nas redes não era incentivada a buscar a Justiça e que muitos profissionais não acreditavam na sua causa. Mas depois que ganhou a primeira ação, não parou mais:
"Estava cansada de sofrer violências e ataques à minha dignidade, imagem e honra. E sendo uma pessoa pública, decidi enfrentar essa triste realidade que é a gordofobia, e também para mostrar que a Justiça existe para nos amparar, que as pessoas gordas têm direitos e a Justiça está evoluindo para nos abraçar e acolher."
Os processos levaram Thaís Carla a contratar uma equipe jurídica para receber todo o material que envolve seu nome e imagem, fazer uma triagem e decidir qual caso vale processo. O grupo até criou petições sobre combate à gordofobia com base em leis existentes, e esses documentos podem ser encontrados nos seus processos, que são abertos.
"Eu sei que hoje sou privilegiada por ter essa equipe, mas quem não tem condições pode e deve procurar a Defensoria Pública, inclusive usar as petições dos meus advogados como base, pois o que eles construíram foi para todos os gordos", ela ensina.
O advogado de Thaís Carla, Ives Bittencourt, explica que a depender da ofensa, a vítima pode procurar ainda as varas cível e criminal, porque o ataque pode ser tipificado como injúria. Mas atenta que pode haver mais preconceito no judiciário:
"Infelizmente ainda tem gordofobia no judiciário, porque há dificuldade de acessibilidade como passar pela catraca; as cadeiras das salas de atendimento e as próprias salas de audiência também não são inclusivas para a pessoa gorda. Não adianta só evolução na questão teórica, mas precisamos ver isso na prática também."
"Mandou emagrecer porque cliente não gostava de funcionária gorda"
Em 2021, a vendedora Carla Danieli da Silva, 26, trabalhava como recepcionista de um hotel em Mato Grosso do Sul quando ouviu da chefia que precisava emagrecer. Sem acreditar na recomendação, foi embora e nem sequer conseguiu voltar ao local. Passou mal, precisou de um tempo para procurar outro emprego, teve a autoestima minada. Mas buscou ajuda de uma advogada, conseguiu provas do que ouviu trocando mensagens com sua gerente e com uma funcionária que passou pelo mesmo e conseguiu indenização de R$ 3 mil, por danos morais.
"Quando entrei no hotel, mais pessoas gordas reclamavam de preconceito, então quando a gerente me falou que eu tinha que emagrecer porque cliente não gostava de funcionária gorda, não quis deixar passar. Acompanho muitas influenciadoras gordas nas redes sociais e criei coragem para ir atrás dos meus direitos", ela conta.
Inicialmente a advogada Anna July Souza Santos tentou um acordo de R$ 30 mil com o hotel por assédio moral, mas não foi aceito. Até porque os funcionários negaram a todo instante o que ocorreu, apesar de prints de conversas entre a gerente e Carla indicarem o contrário.
Segundo Santos, a Justiça também considerou o valor alto para o episódio: "Pesquisamos outros casos de gordofobia e, no geral, as indenizações são baixas. Fiquei com sentimento de que tem que ser uma situação muito vexatória e ocorrer várias vezes para conseguir um valor razoável".
Os casos não param de chegar. Em Santa Catarina, uma vendedora de 32 anos que prefere não ser identificada não conseguiu vestir a calça que fazia parte do uniforme da loja que acabara de contratá-la, no início deste ano. E ouviu críticas do seu supervisor quanto ao tamanho de seu quadril.
"Não reagi negativamente, a princípio, mas com o tempo senti esse tratamento afetando minha autoestima. Me sentia mal e ficava constrangida em vestir o uniforme, que era feito para ficar largo e em mim ficava muito justo", ela relata a Universa.
Abalada, a vendedora foi convencida pela família a entrar na Justiça, e hoje aguarda decisão. "Ainda não ganhei o caso, mas acredito que o processo possa ser útil para que, ao menos, tratem a nós, funcionárias, mulheres, com o respeito e dignidade que nos são devidos."
Especialista em Processo Civil, a advogada Bruna Vial representou algumas vítimas de gordofobia. Ela conta que a maioria dos insultos envolvendo o peso e biotipo das pessoas acontece principalmente no ambiente de trabalho.
"O que notamos com frequência é o abalo emocional que as vítimas de gordofobia levam consigo após as ofensas envolvendo seu peso, e muitas precisam de acompanhamento psicológico para tratar os traumas.
"Não podemos permitir que a prática da gordofobia continue acontecendo. As vítimas podem e devem buscar auxílio do judiciário", finaliza.
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