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Professora sobre confrontos na Maré: 'A gente só quer proteger as crianças'

Ana Flavia é diretora da escola municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, num local conhecido como "Faixa de Gaza " - Arquivo pessoal
Ana Flavia é diretora da escola municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, num local conhecido como "Faixa de Gaza " Imagem: Arquivo pessoal

De Universa, no Rio de Janeiro

26/09/2022 14h24

Moradores do Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro, amanheceram sob forte tiroteio nesta segunda-feira (26), resultado de uma operação das polícias Civil e Militar. Segundo a polícia militar, pelo menos cinco pessoas foram mortas. Houve bloqueios nas linhas Vermelha e Amarela, vias onde motoristas chegaram a descer dos carros e deitar no chão para se proteger das balas. Ao menos 35 escolas da região estão fechadas, além da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e mais quatro unidades de saúde.

Há dez anos atuando em uma das escolas da região, a diretora da escola municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, Ana Flavia Teixeira Veras, 44 anos, conta a Universa que são tantos os conflitos que há até um aplicativo com protocolos de segurança a serem adotados entre profissionais e a Secretaria de Educação nos dias de intenso tiroteio com o fechamento de escolas. "Hoje, antes das 5h, meu celular começou a receber mensagem, com moradores avisando que tem Caveirão [carro blindado da polícia], polícia na entrada da comunidade".

Com cerca de 140 mil moradores e com 16 comunidades, a Maré tem uma taxa de analfabetismo de 6% entre pessoas com 15 anos ou mais, o que equivale a mais que o dobro do índice na Cidade do Rio de Janeiro, de 2,8%, de acordo com o Núcleo de Pesquisas e Monitoramento de Projetos da organização Redes da Maré, de 2019. O estudo destaca que há 44 escolas no local. Leia o depoimento de Ana Flavia a seguir:

"Hoje passei mal, senti dor no peito"

"Trabalho no Complexo da Maré há 10 anos. Hoje sou diretora da Escola Municipal Ginásio Olimpíadas Rio 2016, um local conhecido como 'Faixa de Gaza' porque tem a maior incidência de interrupções de escola por conflitos, entre a Baixa do Sapateiro e a Nova Holanda.

Foi o meu primeiro contato com escola em área de conflito deflagrado, e sempre fico muito chocada. Hoje passei mal, senti dor no peito, porque a gente que está na comunidade sabe o quanto isso afeta quem está lá.

Quando tem um conflito como o de hoje, usamos um aplicativo chamado AMS (Acesso Mais Seguro), um suporte da Secretaria de Educação com protocolos de segurança que nos ajudam a tomar decisões. É um grupo com representantes da comunidade escolar, que junto com a coordenadoria de educação avaliamos uma série de sinalizações de segurança como fogos e conflito entre facções. Com isso a gente decide se abre ou não a escola.

A comunidade também fala com a gente. Hoje, antes das 5h, meu celular começou a receber mensagem, com moradores avisando que tem Caveirão [carro blindado da polícia], polícia na entrada da comunidade, e assim a gente vai começando a mapear as regiões de conflito.

É bom ter esse acesso às famílias e saber o quanto se preocupam em nos avisar. Antes das 5h já tinha aluno e pai mandando mensagem. Usamos isso há cerca de cinco anos porque precisamos ter suporte, de algum respaldo já que não somos da área da segurança.

"Na hora você só pensa em proteger as crianças"

A Maré tem mais de 40 escolas divididas em quatro regiões, com facções diferentes, e às vezes tem conflito entre elas, e não afeta toda a área. O de hoje afetou toda a Maré.

Ás vezes tem conflito durante o dia. Aí colocamos as crianças para almoçar e, quando podem, elas vão para casa com os pais. Muitas vezes ficamos embaixo de tiro na escola, sem conseguir sair, e tem todo um plano de evacuação. Nessa hora, o instinto de proteção às crianças fala alto.

Os profissionais se dividem entre os andares da escola e fica se comunicando um com o outro, temos o cuidado de ver se ficou alguém no pátio, para colocar pra dentro. A cozinha é o lugar mais perto da saída do pátio, vamos para lá. Toda a equipe nessa hora se esforça.

Depois que tudo acaba é que a ficha cai e você pensa: 'podia ter sido baleada', porque na hora você só pensa em proteger as crianças.

Olhando somente do ponto de vista de quem está na educação, são operações com pouco resultado efetivo. Pra gente que está na educação é mais um dia traumático. Para quem está na comunidade, o dia seguinte volta tudo ao normal. Mas não há como interferir nisso porque não é minha área. Apenas consigo observar os impactos que isso provoca.

"O dia seguinte tem que ser de escuta"

Fechar ou abrir escola é algo que impacta na formação das crianças. Até temos protocolo de reposição de aulas, produzido pelos professores, mas cada unidade tem seu modus operandi. É uma educação muito local. Cada realidade é diferente.

O dia seguinte nunca é normal. Você precisa sempre conversar e ouvir os alunos. É um dia de atenção para essa parte afetiva.

Existe ainda toda uma questão que envolve o emocional delas. No dia seguinte a essas operações, a gente recebe relatos de crianças dizendo que tiveram suas casas invadidas, ou receberam fotos e vídeos de corpos. Se isso mexe com a gente, imagine com elas.

Nós não temos um programa de atendimento que faz esse pós-operação. Mas já aconteceu de a prefeitura disponibilizar psicóloga para conversar com as crianças.

Em 2018, por exemplo, um aluno morreu num dia de conflito, e hoje temos até uma clínica com o nome dele, Jeremias [O adolescente Jeremias Moraes da Silva, de 13 anos, foi baleado durante confronto entre traficantes e a polícia quando voltava de uma partida de futebol]. Nessa ocasião houve suporte de uma assistente social.

Também temos apoio do NIAP (Núcleo Interdisciplinar de Apoio às Unidades Escolares), que oferece suporte psicológico para a escola sempre que situações assim impactam o nosso cotidiano.

"Escolhi trabalhar sob risco"

Trabalhar em área de risco foi escolha minha. Já tive oportunidade de sair da comunidade para trabalhar em outros espaços, mas a gente tem um trabalho tão bacana que recusei e preferi ficar na Maré.

Quando comecei, não tinha dimensão do papel da escola nesses lugares. A gente sabe do papel da educação na vida das pessoas, e quando é area de risco, estar ali, ser a presença do estado e garantir o acesso à educação das crianças é algo que me mobiliza muito.

Estudei em escola pública da infância até o mestrado. E sou professora municipal. Também tenho quatro filhos que estudam em escola pública, dois deles em faculdade federal. Então sei a importância da escola pública e acredito no potencial dos profissionais que trabalham ali.

Mas não é fácil, porque a educação acaba sendo esse lugar para onde tudo converge: as questões de saúde, sociais e políticas.
Estar em área de risco mudou a minha vida como educadora. Quado fui para a Maré, entendi o que é estar num lugar degradante com acesso fácil a drogas e armas. E a criança estar ali na escola, apesar disso, é realmente pensar que o que a gente faz é muito importante para as famílias.

Nasci na comunidade e pude escolher meu futuro. Estudei na mesma escola que o Fernandinho Beira-Mar [Narcotraficante, ex-líder de facção criminosa, considerado pelos órgãos federais um dos maiores traficantes de armas e drogas da América Latina], e acredito no investimento em educação." Ana Flavia Teixeira Veras, 44 anos, professora e diretora de escola, do Rio de Janeiro