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Hospital na Argentina onde nasceu Maradona libera aborto em até 7 minutos

Maria Martha Bruno, da Gênero e Número

Colaboração para Universa, do Rio de Janeiro

28/09/2022 04h00

-- Oi, Yamilla. Por que você veio aqui?
-- Pela interrupção voluntária da gravidez.

O diálogo cima é o início da conversa entre Yamilla Gomez, 19, e Oswaldo Santiago, chefe do serviço de obstetrícia do Hospital Evita, um dos mais icônicos da Argentina, por ter sido planejado pela ex-primeira-dama e por ter abrigado o nascimento de Diego Maradona.

Com o aborto legalizado na Argentina desde o fim de 2020, o setor médico focado na saúde feminina atende de 12 a 18 mulheres por dia buscando interromper a gestação. A equipe da Gênero e Número acompanhou duas dessas consultas. Em uma delas, o procedimento foi liberado em 7 minutos.

Mãe de um menino, Yamilla mora na cidade, no bairro de Villa Fiorito, a meia quadra da casa onde viveu Maradona na infância, e trabalha em uma fábrica, colocando selos em brinquedos. Assim que entra no consultório e comunica suas intenções, ela é questionada sobre aspectos de sua vida sexual e reprodutiva:

-- Quando foi sua última menstruação?
-- 7 de maio.
-- Você estava usando algo para não engravidar?
-- Sim, preservativo e pílula.
-- E o que houve?
-- Naquele dia eu não tinha tomado. Esqueci.
-- Ok. E você tomou a pílula do dia seguinte?
-- Não.
-- Você fez algum teste para confirmar a gravidez?
-- Sim
-- Você fez alguma ultrassonografia?
-- Não.
-- Te explico então: agora vamos fazer uma ultrassonografia para ver de quantas semanas você está. E vou te pedir um exame de sangue para fazer sua interrupção de uma forma segura.

Em julho de 2022, a Gênero e Número passou dois dias no hospital, conversando com funcionários e pacientes. A viagem fez parte das filmagens para o documentário Verde-Esperanza: Aborto Legal na América Latina, que, além de Argentina, visitou Bogotá (Colômbia), Rio, São Paulo e Brasília para discutir direitos das mulheres para além de dogmas.

Aborto legalizado desde 2020

A ala comandada por Santiago divide o segundo andar do Hospital Evita com uma imensa capela. Diante da imagem de Nossa Senhora de Luján, padroeira da Argentina, mulheres esperam para serem atendidas.

O médico explica a Yamilla que, ao voltar ao hospital, ela terá duas opções: tomar o medicamento misoprostol, indicado pela Organização Mundial da Saúde para realização de aborto seguro, ou a aspiração manual endouterina. O misoprostol é oferecido gratuitamente pelo hospital, que indica instruções para seu uso em casa.

yamilla - Reprodução - Reprodução
Yamilla Gomez, 19, buscou aborto no Hospital Evita e foi atenndida por Oswaldo Santiago, chefe do serviço de obstetrícia.
Imagem: Reprodução

Já a aspiração é realizada na própria unidade de saúde, com hora marcada. Santiago detalha procedimento para Yamila. Ele conta que, antes de ir ao hospital, as pacientes tomam uma medicação, fornecida gratuitamente, para preparar o cólon do útero. Com um espéculo, os médicos anestesiam a região, a vagina e útero.

Em seguida, é inserida uma cânula com uma seringa grande na ponta, que vai aspirar todo o conteúdo. O procedimento demora cerca de dez minutos, com a paciente acordada. Santiago explica que a paciente pode sentir um pouco de cólica menstrual, mais intensa no final.
Terminada a aspiração, a paciente fica em observação e volta para casa antes de meio-dia.

Todas as pacientes que realizam a interupção da gravidez voltam para casa com um método anticoncepcional de longa duração. Yamilla diz que quer um chip anticoncepcional, que libera progesterona regularmente na corrente sanguínea.

Na Argentina, a lei da interrupção voluntária da gravidez, aprovada em dezembro de 2020, autoriza mulheres e quaisquer pessoas gestantes a abortarem até a 14ª semana de gestação. Elas não precisam explicar o motivo.

A partir deste prazo, se quiserem abortar, elas são autorizadas por outra lei: a interrupção legal da gravidez. Esta legislação, no entanto, vale para casos de estupro ou em que a vida e a saúde (mental e física) da gestante estejam em risco. Nenhuma das leis determina que as pacientes façam boletim de ocorrência ou necessitem de autorização judicial.

1.100 abortos em um ano

"Vim porque não estou mais com o cara com quem eu me relacionava. já tenho um filho. Não tenho condições econômicas de criar outro", conta Yamilla. Ela foi ao hospital acompanhada da mãe ainda que a família não apoie a decisão.

Carregado de simbolismos, o hospital público foi idealizado por Eva Perón e fundado dez dias após sua morte, em 1952. Oito anos depois, lá nasceu Maradona. Imagens de ambos estão espalhadas pela entrada e nos corredores. No portão principal, uma camisa puída da seleção argentina traz os dizeres, em alusão à mãe do craque: "Aqui nasceu o D10s. Obrigada, Dona Tota. O bairro agradece."

O serviço comandado por Osvaldo Santiago atende de 12 a 18 mulheres por dia, de segunda a sexta, entre 8h e 11h. Somente em 2021, realizou 1.100 procedimentos de interrupção de gravidez. Até brasileiras recorrem à unidade. Foi o caso de uma moradora de São Paulo, que viajou para fazer um aborto no hospital em junho de 2022.

"Ela fez uma consulta no Brasil e, como viu que havia muita dificuldade, resolveu vir para cá. Ela voltou para casa com um método contraceptivo de longa duração. Pelo contato que temos com o Ministério da Saúde, sabemos que há pacientes que saem do Brasil para serem atendidas na Argentina, por causa da situação que existe no Brasil", conta Santiago.

Várias mulheres são encaminhadas ao Hospital Evita após ligarem para o telefone 0800 do Ministério da Saúde. O serviço oferece informações sobre assuntos relacionados à saúde reprodutiva, como assistência em casos de violência sexual, câncer de cólon de útero e de mama, métodos contraceptivos e interrupção legal da gravidez.

Em 2021, primeiro ano com a lei em vigor, foram quase 18 mil atendimentos relacionados ao aborto legal em todo o país, um salto de 66% na comparação com todo o ano de 2020 (10.817 abortos) e um total superior ao registrado na década anterior (17.302).

A estudante nutrição Yrina Berrueta, 24, chegou ao Hospital Evita depois de ligar para o 0800. Foi com o companheiro. Mãe de uma menina de dois anos e meio e moradora de Lobos, cidade de 30 mil habitantes, a duas horas de Buenos Aires, ela conta por que buscou a unidade ao engravidar novamente:

"Fiquei grávida no meio da faculdade. Naquele momento, o aborto voluntário não era legalizado e eu tinha medo de morrer. Tive minha filha e não me arrependo. Mas, naquela época, eu não podia ter acesso ao direito que tenho agora. Moramos em uma casa emprestada, muito pequena, que seria ainda menor com outro integrante e com tudo o que implica ser mãe. É uma atividade de tempo integral. Resolvi priorizar meus estudos desta vez".