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'Meu puerpério durou 3 anos. Foi um luto, mas escrever me ajudou na cura'

Julieta: "Foi uma despedida da mulher que fui para vir uma nova" - Arquivo pessoal
Julieta: 'Foi uma despedida da mulher que fui para vir uma nova' Imagem: Arquivo pessoal

Julieta Franco, em depoimento a Denise Meira do Amaral

Colaboração para Universa, em São Paulo

29/09/2022 04h00

"Eu sempre quis ser mãe. Mas, quando engravidei, aos 29 anos, fui pega totalmente desprevenida. De repente, a vida já não era só minha e todo o processo de mudança começou aí. Tinha medo de me expor à dor, então, minha vontade era de fazer uma cesárea, achava que o parto normal seria uma agressão ao meu corpo.

No decorrer da gravidez, fui estudando e obtendo mais informações. O Calvin, desde as 32 semanas, já estava encaixado para um parto normal. Fui entendendo que a maternidade não era só sobre mim, mas também sobre o que meu filho queria. Acabei tendo um parto normal e muito humano.

Depois de receber alta do hospital e voltar para casa, me vi sozinha. Apesar de ter meu marido em casa, as madrugadas eram só minhas. Quando o relógio começava a se aproximar das 18h, a sensação de solidão começava a bater. Sabia que tinha muita coisa por vir e que só eu iria passar. Tinha medo de não dar conta, de passar mais uma noite sem dormir, de chorar sem parar. Eram dias e noites de crise existencial, de crise matrimonial, de desistência.

A solidão é crônica. E existe, mesmo acompanhada. Mesmo tendo minha mãe, rede de apoio paga, meu marido —embora ele não fosse presente como seria hoje—, a solidão é muito mais um sentimento do que algo físico.

Quando me via sempre sozinha demais, só eu e meu puerpério, tinha a sensação de estar enterrada. Como se tivesse morrido. E morrer é solitário. Sentia toda essa inexistência, essa despedida. Eu não existia mais.

A privação do sono foi a parte mais difícil da maternidade. Passei três anos sem dormir uma noite inteira. Tive épocas em que amamentava de hora em hora, e pensava: 'Por que precisa ser assim comigo'? Acordava exausta e com a sensação de que a vida tinha acabado. Uma tristeza crônica e uma raiva que pareciam durar para sempre.

Ju - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Julieta: 'A privação do sono foi a parte mais difícil da maternidade. Passei três anos sem dormir uma noite inteira'
Imagem: Arquivo pessoal

Muita gente ainda acredita que o puerpério dura 40 dias. Mas quando você sabe que ele pode se prolongar por três anos, é como se os nossos sentimentos fossem legitimados. É preciso dar voz a essas emoções. Todo esse descompasso, esse colapso existencial que a gente sente, é legítimo. Não são coisas da nossa cabeça. Ter consciência disso nos liberta.

O meu puerpério foi muito difícil e isso de alguma forma refletiu na minha vida pessoal e profissional como um todo. Mas só consegui perceber isso depois que passou.

Fui procurar ajuda psicológica após entrar na faculdade de psicologia, três anos depois, e me dar conta de que estava em processo de adoecimento psíquico, uma depressão causada por uma série de feridas encapsuladas. Algumas existiam desde antes da maternidade. Percebê-las foi me curando.

Escrever também foi uma forma de me curar. Passei a compartilhar textos nas redes sociais para ajudar alguém. E esse alguém era eu mesma. É como se estivesse conversando com quem fui um dia.

Costumo dizer nas minhas mentorias que 90% dos casamentos 'acabam' no primeiro ano após o nascimento de um filho. Muitas vezes não é uma separação real. É reacomodação, reestruturação, recomeço. Não é culpa do filho. É acerto de contas de assuntos que estavam sendo empurrados para debaixo do tapete.

A produtora de conteúdo digital Julieta Franco e o filho, Calvin - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A produtora de conteúdo digital Julieta Franco e o filho, Calvin
Imagem: Arquivo pessoal

Tive problemas estruturais com meu esposo, já pensei algumas vezes em me separar durante o puerpério. Mas depois de uma conversa, ele sempre voltava melhor. Para o casal é importante ter a consciência de que as coisas não vão mais ser como antes. Dito isso, é preciso que exista uma parceria para enxergar as necessidades do outro.

Hoje percebo que a normatização da sobrecarrega da mulher atropela todo processo do pós-parto. Se a mulher sofrer um abandono crônico como consequência desse machismo e do patriarcado, o puerpério pode se transformar em uma doença generalizada.

Muitas mulheres são abandonadas, mesmo estando em um relacionamento aparentemente acolhedor. Esse abandono masculino é velado. E mulher que se sente sozinha, não compreendida, se afasta. Os homens não entendem que muito do afastamento que vira frieza, mau humor, irritabilidade, é apenas um pedido deslocado para que esse homem acompanhe esse novo mundo.

'Renascimento'

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'O meu puerpério foi muito difícil e isso de alguma forma refletiu na minha vida pessoal e profissional como um todo. Mas só consegui perceber depois que passou'
Imagem: Arquivo pessoal

Durante meu parto deixei para trás quem eu era. Foi uma despedida da mulher que fui para vir uma nova. Estruturas muito profundas se romperam internamente. Por isso o meu puerpério foi um processo de luto. Segundo a psicologia, o luto passa por algumas fases: a negação, a luta contra a nova realidade, a raiva e, só por último, a conformidade. Por isso a mulher leva um tempo para se reestruturar.

Ser mãe me fez sair do palco. Entendi que a vida não é só sobre a minha dor e minhas necessidades. Deixei meu ego. Esse processo de sair do centro para ser centro de alguém é um grande marco. É uma experiência próxima à divina. Sinto que Deus fala comigo todos os dias pela janela chamada filho.

Ju - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Julieta com o filho, Calvin, e o marido
Imagem: Arquivo pessoal

A experiência de ser mãe me levou para esse outro nível de evolução. São nos momentos limítrofes da vida que passamos por essas experiências espirituais.

Depois de ser mãe, mudei de profissão —era advogada e passei a criar conteúdo sobre maternidade e criação—, comecei uma faculdade de psicologia e um mestrado e escrevi um livro. Tomei as decisões mais importantes da minha vida. Muitas coisas passaram a ser inegociáveis.

Meu relacionamento ficou melhor, a maternidade transformou a gente em um casal maravilhoso. Meu posicionamento com o mundo também melhorou. Sou uma pessoa mais compreensiva, paciente e empática.

Ju - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
'O Calvin tem hoje oito anos. E olha, não é verdade que fica mais fácil. A gente é que fica mais forte'
Imagem: Arquivo pessoal

Se me perguntarem se eu passaria por todo esse puerpério de novo, diria que sim. Faria tudo pelo Calvin. Ele faz parte do meu despertar, do meu renascimento. Mas não seria uma experiência facilmente revivida. Tanto que até hoje não tive outro filho.

Eu olho para trás e continuo achando que foi insuportável e achei que não fosse aguentar muitas vezes. Mas esse mergulho vale a pena. Por nós e por nossos filhos. É uma grande revolução. Se olhar pelo aspecto da jornada, o puerpério foi superdifícil e desafiador. Mas, pela revolução da minha vida, o puerpério foi maravilhoso.

O Calvin tem hoje 8 anos. E olha, não é verdade que fica mais fácil. A gente é que fica mais forte. O fortalecimento que a maternidade proporciona é o que faz tudo valer a pena. E há a certeza do dever cumprido, de que passamos por tudo com um propósito maior, de ter escrito um livro, página por página."

Julieta Franco é produtora de conteúdo digital, autora do livro "O Poder do Apego" (Sinopsys Editora) e mora em Brasília (DF)