Negra Li sobre a maternidade: 'Vivemos uma série de pequenas violências'
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Negra Li acaba de completar 43 anos e faz questão de comemorar a data. "Não tenho problemas em envelhecer porque é um sinal bom de que eu vivi, cheguei até aqui", diz. A cada ano que passa, diz se sentir mais à vontade para falar publicamente sobre suas ideias, que foram mudando ao longo do tempo. Em seu perfil no Instagram, há posts recentes celebrando mulheres negras e personagens que têm tornado o meio artístico mais plural. Mãe de dois - Sofia, de 13 anos, e Noah, de 5 anos - ela dá destaque especial às animações infantojuvenis que, nos últimos tempos, têm criado personagens mais diversos, como heroínas negras. Mas, em um passado não muito distante - ela envelheceu, mas ainda é bem jovem -, assuntos como estes não a interessavam tanto.
A cantora de R&B e black music começou a carreira no rap, cena musical que, nos anos 1990, era bastante masculina. Poucas mulheres tinham visibilidade no meio e ela se via na necessidade de "jogar o jogo". "Ficava mais quieta, observando, e isso me ajudou a entender certas coisas", diz. Por anos se sentia segura acompanhada por 15 "manos" em uma van. Mas, com o tempo, percebeu que a sensação era falsa. "Se eu fizesse algo que eles não achassem legal, estaria sozinha."
Essa postura se refletia em seu trabalho. No início dos anos 2000, escreveu um rap para a série Antônia que negava o feminismo. A canção "Nada pode me parar" dizia: "Nem feminista, nem pessimista, sou satisfeita". Mas, depois de se casar, ser mãe e se divorciar, concluiu que saga feminina é marcada por "uma série de pequenas violências". Com isso, acredita ter compreendido seu papel como alguém que luta pela equidade de gênero e racial.
No último dia 20, ela subiu ao palco da Casa Natura Musical como madrinha das categorias Igualdade e autonomia e Influenciadoras do Prêmio Inspiradoras 2022. Durante a premiação, cantou "Feeling Good" (clique no link para assistir) de uma das artistas mais emblemáticas na luta por direitos das mulheres negra, a americana Nina Simone (1933 - 2002). A capella, surpreendeu a todos com algo que não estava no roteiro. "Sou grata pelas mulheres que morreram para eu ter liberdade", disse Negra Li no evento.
Em agosto, a cantora voltou aos palcos depois de um hiato de três anos. Neste meio-tempo, lançou as músicas "Malagueta" e "Era Uma Vez Liliane" e passou por um processo de autoconhecimento. A jornada incluiu o diagnóstico de TDAH, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade. Estas vivências devem estar presentes no próximo álbum, previsto para ser lançado ainda este ano. Veja a entrevista na íntegra a seguir:
UNIVERSA: Quais são as inspirações para as suas músicas, onde você procura referências?
Na minha vida. Ainda tenho muita coisa para falar. Eu fiz um álbum em 2018 onde coloquei coisas experiências pessoas. Mas, depois disso, muitas mudanças ocorreram. Muitos tabus foram quebrados, crenças foram embora. Aquela borboleta saiu do casulo e se transformou. Vi que, depois de passar por um processo de autoconhecimento, eu tinha muito o que falar a respeito de tudo o que aconteceu. Estou usando esse álbum para contar as diversas etapas da minha vida, no que me transformei. Tem músicas politizadas, pois acho que cheguei a um certo momento da minha vida em que sei o que quero. Fico cada vez mais segura de falar o que eu penso.
Você se sente mais à vontade em falar mais sobre política, sobre racismo?
Amadureci nessa parte minha, tanto que hoje em dia utilizo as minhas redes sociais para informar as pessoas sobre política e racismo. Sempre toquei nesse assunto. Eu falava muito sobre nos shows e em entrevistas. Com as redes sociais, ficou muito mais fácil a gente expor a nossa opinião, dizer o que pensamos, mas a internet também facilitou as críticas. Claro que fico meio assustada, as pessoas às vezes agridem, acham que eu devia estar acostumada porque sou uma figura pública, mas eu sou humana! Fora isso, fui diagnosticada com TDAH [transtorno de déficit de atenção com hiperatividade] e muitos desses receios de me expressar têm a ver com distúrbio. Ele faz com que eu me atropele, o raciocínio fica muito rápido e não consigo ser clara. Agora me medico e estou mais à vontade.
Por que acha que é importante ampliar temas como a equidade de gênero, equidade racial, sendo uma artista?
O rap é porta-voz da periferia. Sempre foi a voz dos oprimidos, daqueles que não podem alcançar. A minha arte já era politizada. O rap relatava, delatava, dava conselho para estudar, ficar longe do crime. O rap fez muito e faz mais do que o governo deveria fazer, que é educar as crianças, passar a verdade para elas enxergarem o mundo como é. Abraçar, mostrar o caminho. Por isso é extremamente importante. Para mim, sempre foi um dom, um presente, uma coisa que eu precisava distribuir, passar para a frente. Acho importante ajudar e transformar a vida das pessoas com as minhas mensagens e as minhas experiências.
Você foi convidada para ser a madrinha das categorias do pilar equidade de gênero do Prêmio Inspiradoras 2022. Este é um tema importante para você?
Eu fiquei lisonjeada porque as pessoas enxergaram essa bandeira em mim. De alguma forma, eu faço as pessoas questionarem e verem que essas questões são importantes para mim. Eu fui me desconstruindo com o tempo. Quando comecei no rap, era um estilo altamente machista, poucas mulheres tinham visibilidade. No início da minha carreira, eu andava com 15 homens em uma van e me sentia protegida. Mas percebi que não existe essa segurança. Quando pude me afastar, depois de um tempo, comecei a detectar machismo. Percebi que havia certas coisas que eram formas de manipular, de me podar. Foi difícil essa transformação de obter a independência e seguir carreira solo em 2006. No entanto, isso só me fortaleceu e me fez perceber que não precisava de homens para nada, nem mesmo para segurança, porque, se você pisar na bola, fizer algo que eles não acham legal, vai perceber que está sozinha. Você não é um dos caras. Então fui me unir mais a mulheres, pessoas LGBTs, que me abraçaram, fizeram com que me tornasse feminista. No passado, eu escrevi em um rap, para a série "Antônia", em que eu falava que não era feminista. "Nem feminista, nem pessimista, sou satisfeita". Eu tinha uma ideia errada do feminismo. Com a informação que temos hoje, a minha filha de 13 anos fala que é feminista. E eu também sou, com muito orgulho, e todo mundo deveria ser.
Você mencionou como a cena do rap pode ser bastante machista. Você sempre esteve em busca de equidade de gênero dentro desse mercado musical?
Sempre. Sempre tive que estar ali, mas não era todo momento que eu tinha coragem. Mas pelo menos eu estava e sobrevivi, fazendo um jogo. Sou muito observadora, mais quieta, isso me ajudou a entender certas coisas, analisar, e usar isso ao meu favor. O "Antonia" veio como uma forma de entender a luta das mulheres, o espaço em que elas tanto buscavam. A série falava disso, de quatro garotas que eram backing vocals de um grupo masculino e decidiram seguir a carreira delas, e precisavam lutar pelo espaço delas.
Como foi o processo de desconstrução?
Foi muito doloroso. É uma revolta, é uma dor. Imagina você dentro da sua própria casa lidando com o machismo porque você também é machista. Quando você também é machista, acaba sofrendo "menos", porque não enxerga, acha que tudo bem ser tratada daquele jeito. Mas quando tira a venda dos olhos, é doloroso. Hoje é libertador não me importar com o que os outros acham, me achar tão capaz quanto os homens, que temos os mesmos direitos e capacidades. Então vejo como uma liberdade, mas foi difícil.
Além de Sofia, de 13 anos, você é mãe de Noah, de 5 anos. Como a maternidade mudou a sua visão sobre a vida das mulheres?
A maternidade me fez enxergar muitas coisas, muitas das injustiças que nós mulheres sofremos. Ninguém conta como a gente é largada depois que tem filho. Ninguém te comunica como é. Você tem que aprender muito sozinha. Ninguém diz que cai a libido, o seu corpo, a cabeça, as relações mudam. Ninguém conversa sobre isso. A gente tem incontinência urinária, dúvida sobre parto normal ou cesária. É uma série de pequenas violências que a sociedade impõe sobre a mulher até na escolha de um anticoncepcional. Dói demais perceber que, em 2022, você ainda tem que lutar por direitos sobre o seu corpo. Mas é libertador porque, uma vez que você sabe, busca o caminho para fazer valer a sua liberdade e a luta de quem veio antes. É bom lembrar que a gente precisa usufruir desse espaço, desse lugar que tanto foi lutado para que possamos estar. Ainda mais eu sendo uma mulher preta, que é uma outra luta. Estamos na base da pirâmide, há a solidão da mulher preta. Ainda temos muito o que conquistar, mas não podemos esquecer a luta de quem veio antes.
Como seria um mundo melhor para a sua filha?
O mundo é muito gigante, então é melhor a gente cuidar do nosso próprio mundo. Nós somos o mundo. Cuidando da gente, vamos viver melhor. Não podemos esperar que as coisas mudem para sermos felizes. Quero que ela tenha consciência, autoconhecimento, autoestima, autocompaixão. Não quero que ela sofra síndrome da impostora, quero que ela saiba quão maravilhosa é, que tenha liberdade de escolha, seja uma pessoa coerente, simples. Ela já é tudo isso, precisa continuar em frente do jeitinho que ela é sem que ninguém possa desmerecê-la, sem que ninguém apague essa luz que ela já tem. Eu espero que ela possa sempre ouvir a voz de dentro dela. O mundo dela é que está bem. Infelizmente não dá para dizer se vai melhorar amanhã. Atrocidades continuam acontecendo, de maneiras diferentes.
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