Ela saiu do mundo do crime e hoje ajuda ex-presos a conseguirem emprego
O Brasil ocupa a terceira posição do ranking de países com a maior quantidade de presos do mundo e tem um alto índice de reincidência. O número de pessoas que voltam a cometer crimes, retornando para o sistema prisional, chegou a 42,5% em 2020, de acordo com a pesquisa do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Falta de oportunidade, de educação e preconceito são apontados como os principais responsáveis por essas estatísticas.
"A sociedade tem preconceito e desconhece a temática, bem como as dificuldades que permeiam a vida da pessoa egressa", afirma Karine Vieira, ex-presidiária e fundadora do Responsa, projeto que ajuda ex-presos na busca de uma melhora de vida.
Karine conta que apesar de não ter sofrido com olhares preconceituosos da sociedade, por ser branca e de classe média baixa, ela, que passou 15 anos no mundo da criminalidade, sabe muito bem o quanto ex-presos sofrem para serem inseridos na sociedade.
Para ela, é muito mais uma questão de inserção do que reinserção, já que muitos dos que saem da cadeia nunca tiveram uma oportunidade de ingressar no mercado de trabalho formal e, na maioria das vezes, viveram na margem social. Para tentar resolver esse problema, há cinco anos a assistente social criou o Responsa.
Todos os dias, Karine trabalha para mudar a realidade de diversas pessoas. Ao lado dos seus mais de dez funcionários e voluntários, ela atua para conseguir empregar ex-presos. Quando eles chegam no local, são atendidos, encaminhados para o núcleo psicossocial para fazer o acolhimento e lá descobrem quais são suas principais habilidades.
Na sequência, são capacitados na área de gestão de pessoas, onde aprendem como se comportar, se vestir e qual linguagem usar no ambiente de trabalho, antes de fazerem a entrevista.
Com parceria de dez empresas, os funcionários do Responsa selecionam as vagas e encaminham os perfis mais indicados. Depois de passarem pelo processo seletivo, o projeto da Karine faz um acompanhamento, que pode durar de seis meses a um ano. "Em um processo de gestão compartilhada do candidato, a instituição ouve os apontamentos da empresa e continua treinando para que a pessoa continue evoluindo dentro da vaga de trabalho", diz a assistente social.
Desde 2018, o instituto acolheu mais de 2.100 pessoas e capacitou outras quase 1.800. Além disso, 1.117 pessoas atendidas pelo Responsa passaram pelo mercado formal de trabalho. Na medição interna, apenas 5% dos atendidos voltaram a cometer crimes e 80% dos casos evoluem progressivamente no emprego. "Quando acontece uma interrupção de trabalho, a gente desenvolve a pessoa um pouco mais, para que mais para frente entre em outra oportunidade", conta Karine.
Adolescência na criminalidade
Karine Vieira tem 40 anos, é formada em serviço social, mãe de três filhos de 22, 15 e 8 anos, e avó de uma menininha de 2 anos.
Nascida e criada na região leste da cidade de São Paulo, a criadora do Responsa teve uma infância tranquila até os quatro anos, quando os pais se separaram. Aos 12, se mudou com a mãe e o irmão mais novo para um condomínio localizado entre a Vila Antonieta e o Jardim Aricanduva, onde havia duas comunidades.
Desde muito nova, a paulistana sempre teve muita responsabilidade. Com a mãe ocupada em três empregos, Karine precisava cuidar dos afazeres de casa e não tinha muita liberdade para sair com os amigos. Antes de cometer o primeiro delito, aos 14 anos, ela trabalhou por um tempo em um shopping, mas a mãe, que não gostava de vê-la saindo, fez com que ela deixasse o local.
Quando ela começou a fazer parte do grupo de amigos, que eram tanto de classe média baixa como da comunidade, a sensação de liberdade foi conquistada. Seguindo os outros membros do grupo, Karine começou a roubar para poder comprar seus itens pessoais, para que não precisasse mais pedir dinheiro para os pais.
"Faltava diálogo em casa e a minha mãe me prendia bastante, então com aquele grupo eu me sentia pertencente e tinha a sensação de empoderamento e autonomia. Elas tinham realidades parecidas com a minha, da questão familiar e outros pela questão financeira, que também eram de classe média baixa", relembra Karine.
Como repetiu um ano na escola particular, o pai a mandou para a escola estadual, onde permaneceu até o primeiro ano do ensino médio. Dois anos depois, saiu de casa e parou os estudos, e aos 17 engravidou do namorado. Com o passar da gestação, resolveu sair do mundo do crime, onde furtava e assaltava. "Minha filha nasceu com fissura labiopalatina e tomamos um baita de um susto, porque não apareceu no ultrassom morfológico. Todo o cuidado que tive com ela me afastou da criminalidade por quase quatro anos."
Aos 18, separada do pai da filha, ela conseguiu um emprego na Varig. De volta às baladas na companhia dos amigos, voltou a consumir álcool e drogas em maiores quantidades. Por conta disso, no dia seguinte aos passeios, muitas vezes, a paulistana faltava no trabalho. Logo perdeu o emprego, quando a empresa começou a realizar cortes.
Na mesma época, Karine precisou sair da casa onde morava, que pertencia à família, porque sua mãe queria morar no imóvel e as duas não tinham um bom relacionamento. "Quando tinha perto de 22 anos, pedi para a avó da minha filha ficar com ela. Eu me vi em uma situação de desemprego e reencontrei meus amigos novamente. Apareceu a oportunidade de voltar para o ilícito e eu aceitei para levantar um dinheiro rápido para ter meu espaço. A vida do crime é mais difícil do que a vida de trabalho porque oferece muitos riscos, como ser preso, ou acontecer algo com sua integridade física", diz Karine.
Antes de ser presa em outubro de 2005 pelo crime de uma amiga, ela passou uns tempos roubando até que foi apresentada a um contato que precisava de ajuda com a parte administrativa do tráfico de drogas.
Depois de quase seis meses na cadeia, saiu sem perspectiva de mudança e acabou voltando para a criminalidade. No ano seguinte, teve seu segundo filho.
Tudo mudou em 2008, após ver uma mãe perdendo o filho. A partir desse momento começou a pensar o que estava deixando de legado para sua prole. "Isso me deu aquele start onde optei por traçar um novo caminho e escolher uma nova trajetória para mim, porque não queria deixar aquela realidade para eles."
De egressa a fundadora do Responsa
Em 2008, Karine resolveu terminar o ensino médio, que havia abandonado ainda na adolescência. No meio de 2009, prestou o Enem, que lhe garantiu uma bolsa de 100% para o curso de serviço social.
No mesmo ano, ela conseguiu o primeiro trabalho lícito depois do cárcere. "Foi bem informal, em uma papelaria do bairro, onde ganhava R$ 25 por dia, que era muito menos do que eu ganhava na correira do ilícito, mas foi o dinheiro que mais me trouxe paz e tranquilidade."
Desde o começo, Karine conta que a escolha da faculdade foi pensada como uma forma de ajudar outras pessoas que passaram pela prisão. No ano seguinte, começou a trabalhar em um escritório de advocacia, onde teve contato com um grande administrador judicial.
Os estudos e o trabalho funcionaram como um verdadeiro divisor de águas, onde as oportunidades efetivaram sua transformação. "O trabalho [foi um divisor] porque eu precisava gerar renda, ter dignidade e sustentar meus filhos. E o estudo abriu novos horizontes, novas perspectivas e chances de me relacionar com outros grupos sociais."
Depois de passar quase dois anos atuando no atendimento de adolescentes e jovens que infracionaram, assumiu a coordenação da Agência Segunda Chance, em São Paulo, onde trabalhou até 2016. Após o escritório da ONG fechar, ela continuou realizando atendimentos voluntários da maneira que conseguia.
Em maio de 2017, Karine conheceu as diretoras do Instituto Ação pela Paz (que capacita e emprega egressos do sistema prisional) e, por meio delas, a presidente do Instituto Humanitas 360 - atua para diminuir a violência e melhorar a qualidade de vida da população. "Essas pessoas me incentivaram a escrever a história de um projeto meu. A partir disso, eu fiz um compilado de informações da minha vida pessoal e do trabalho, e criei o Responsa em São Paulo."
Atualmente, o maior desafio do projeto está na obtenção de vagas. Mas Karine afirma que ter projetos como o dela é fundamental para incluir pessoas no mercado de trabalho e gerar oportunidades para formar novas histórias.
O projeto também tem o objetivo de desconstrução de pensamentos, preconceitos e estigmas. "Essa desconstrução só pode ser viabilizada através dos casos de sucesso, de histórias que dão certo, mostrando para sociedade que oportunidades geram outras oportunidades que transformam, e com isso contribuem para diminuição da violência e da reincidência."
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