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'Meu ganha-pão gera prazer': O que é camming e como é o sexo pelas câmeras

Mulheres contam como se tornaram camgirls - iStock
Mulheres contam como se tornaram camgirls Imagem: iStock

Giovana Godoi

Colaboração para Universa, de Curitiba

01/10/2022 04h00

Todos os dias, bem cedo, Ágata calçava as mesmas sapatilhas desgastadas e caminhava até o instituto de pesquisas onde trabalhava sem registro. Ao fim do expediente, recebia o valor das pesquisas custosamente realizadas em notas surradas de R$ 5 e R$ 10, até juntar, com sorte, cento e poucos. Ela não tinha documentação retificada e apesar de seu português perfeito, boa noção de conhecimentos gerais e inglês fluente, não conseguia um emprego formal. Tinha de se conformar com o cotidiano explorador do seu local de trabalho, onde outra vez foi retirada de uma grande pesquisa sem justificativas plausíveis, logo após o dono do instituto descobrir que ela era uma mulher trans.

No caminho de volta para casa, a paranaense de 24 anos passava no mercadinho e comprava um vinho tinto e algo para comer. Abria os seus aplicativos de paquera e, na solidão da sua quitinete, passava horas online conversando com homens que a tratavam como rainha e a chamavam para drinques e sessões de cinema nos finais de semana.

Com seu rosto delicado, ombros cobertos de sardas e cabelos ruivos e ondulados, sempre passou facilmente pelos lugares como uma mulher cis, o que a deixava confortável, pois se desconcertava todas as vezes em que a vida a expunha a uma situação de ter de explicar a sua transexualidade. Quando as sextas-feiras chegavam, ela vestia meias-calças finas, carregava os cílios de rímel e pendurava grandes brincos na orelha: era o momento de descobrir, olhos nos olhos, quem a tratava feito rainha por detrás das telas, se aventurar e beijar na boca.

Os cortejos eram vários e as noites longas, mas preferia voltar para casa sozinha, na maioria das vezes. O receio de esclarecer a anatomia do seu corpo antes de cada relação sexual, o medo de colocar a sua integridade em risco e a insegurança eram um impasse para que ela deixasse aqueles homens passarem pela porta da sua casa. Já tinha perdido a conta de quantas vezes, ao permitir isso, outros caras que se diziam perdidamente apaixonados sumiram na manhã seguinte. Preferia guardar para si a fantasia e sumir antes.

Com o início da pandemia, em 2020, o instituto de pesquisas fechou as portas. Não tinha estrutura para home office. Ágata recorreu à sua família para pedir ajuda com os custos da quitinete e da alimentação, mas ninguém estava disponível, não ao menos suficientemente. Desesperada e ainda sem retificação devido a um atraso de anos da defensoria pública, ela descobriu o camming.

O trabalho de camgirl (ou camboy) consiste em criar um perfil numa plataforma autenticada e ser pago para ter relações online, sexuais ou não, com outras pessoas. Elas carregam suas contas com crédito e entram nas salas das modelos para um bate-papo em que a camgirl aparece constantemente na câmera, recebendo um valor por minuto rodado. Existem diferentes modalidades de camming, a depender do site ou da plataforma.

Levou algumas semanas para que Ágata tomasse a sua decisão. Em poucos dias, foi aceita como modelo no maior site de camming do Brasil. Seu perfil é localizado diretamente na aba transex. Pela primeira vez na vida, ela não se cobre sob a imagem de mulher cis, e não precisa explicar quem é para ninguém.

"Até essa altura da minha vida, eu tinha uma sexualidade bem fechada. Todas as minhas relações eram perseguidas pela condição da minha transexualidade. Era cansativo ter de sempre esclarecer isso em um ponto em que essas relações já estavam mais íntimas. Apesar de eu ser bissexual, tenho maior interesse por homens cisgênero, a categoria de pessoas que menos compreende e, contraditoriamente, mais busca por mulheres como eu", conta.

Ágata teve de ser ainda mais exigente e imperativa quando entendeu que uma mulher trans, provavelmente assim como toda mulher, precisa às vezes impor o seu prazer numa relação heterossexual.

"Antes do camming, eu era uma menina que distribuía prazer e terminava sozinha, o que era muito conveniente para os homens. Hoje, por consequência da relação de sustento que eu criei com o sexo, sei me impor. Estudei muitos perfis antes de criar o meu, até entender que prefiro um modelo de trabalho mais intimista. Se o meu ganha-pão gera prazer no outro, é preciso muito mais atenção em mim para entender o que de fato me dá prazer", comenta.

Eu pensava, de forma deturpada, que por ser uma mulher fora do padrão, tinha de me contentar com a submissão ao satisfazer o outro e não ter reciprocidade. Eu quase nunca gozava nas minhas relações sexuais e achava isso normal. O camming me fez entender que não é.

Desde o início, Ágata teve facilidade em ser camgirl. Ela dá preferência a homens que querem criar uma conexão antes da troca sexual, como uma boa conversa, gerando conhecimento e química entre as duas pessoas, seja ela como for. Com isso, conquistou clientes fiéis, que sempre voltam em busca do seu papo cativante, gentileza e mente aberta.

"Já recebi homens no meu chat com todos os tipos de fetiches imagináveis, alguns extremamente específicos e inusitados. Posso não compartilhar dos mesmos fetiches, mas acho legal que eles se sintam à vontade para dividir comigo a sua intimidade, dar a eles o prazer que eles não recebem pela falta de compreensão e também a experiência quase antropológica de conhecer o ser humano mais de perto, fora da caixa e das convencionalidades às quais estamos tão habituados", afirma.

'Tenho orgulho do que conquistei com o camming'

Seu perfil cresceu rapidamente em dois anos. Com o dinheiro do camming (sua única ocupação atual), saiu da quitinete no centro e se mudou para um apartamento de dois quartos num bairro residencial, elevou o seu padrão de vida e faz planos para o futuro. Ela tem uma rotina de trabalho de mais ou menos cinco horas diárias, com um dia de folga na semana, em média, e se sente realizada.

"É maravilhoso não depender de ninguém, não mais sofrer exploração no trabalho, fazer as coisas do meu jeito, conhecer pessoas. Me sinto orgulhosa do que construí e conquistei com o camming", diz.

"É claro que nem tudo são flores. Há dias em que, como qualquer pessoa, minha autoestima está no pé. Rola timidez, insegurança, e aí o trabalho não flui tão bem. É comum que em dias assim eu recorra ao álcool para me soltar, o que não é legal em vários sentidos. E eu já reparei, visitando perfis de outras garotas, que muitas fazem isso também. Falando de forma mais ampla, é um trabalho que demanda muita energia, e às vezes pode te drenar. Sem falar de alguns sujeitos desrespeitosos que entram na sua sala e o desgaste emocional que isso gera."

Na pandemia, o camming foi a sua fonte de renda, e também um recurso para segurar a sua saúde mental por meio do contato com as pessoas.

Ser camgirl me ajudou a passar pelo isolamento social não me sentindo tão sozinha. Aprendi a olhar para as pessoas que entravam no meu chat não como o meu objeto de trabalho, mas como pessoas com quem eu posso ter uma troca interessante, aprender e compartilhar bons momentos em diferentes sentidos.

'Posso trabalhar na segurança da minha casa'

O isolamento social também foi a razão para que a carioca cisgênero Cacau, 23 anos, pele preta e grandes olhos verdes, se tornasse camgirl. Antes disso, ela saía com homens pessoalmente. Cacau tinha medo de contrair covid e respeitou a quarentena, ainda que financeiramente desesperada na época. Assim como Ágata, ela recorreu ao camming como seu novo sustento.

Enquanto "garota de programa", como ela se autodescreveu no passado, sofreu abusos que causaram danos psicológicos com os quais lida até hoje. Desde quase ter sido forçada a uma relação sexual sem preservativo até ter sido agredida fisicamente, Cacau ainda teve de ouvir que esses são "ossos do ofício" de quem trabalha com sexo.

Nenhuma mulher merece esse tipo de tratamento sob a justificativa de ser uma garota de programa. O site em que eu trabalho atualmente me dá toda a tranquilidade que eu preciso. Se eu quiser banir um usuário inconveniente da minha sala, posso fazer isso, e o suporte é 24 horas. Posso trabalhar na segurança da minha casa, onde sou eu quem faço as regras e meu corpo é respeitado.

Ela redescobriu o seu prazer nos chats online. Experimentou a sexualidade de forma imersiva e, na vida pessoal, pôs em prática aventuras sexuais que não conhecia até se cadastrar no site. Ela revelou a mais surpreendente das suas descobertas: o ménage feminino. Além disso, lidou com inseguranças relativas à sua aparência: imperfeições naturais de corpos femininos reais que a incomodavam no seu trabalho antigo, e hoje estão superadas. "Recebo elogios sinceros e mimos dos meus clientes. Isso eleva a minha autoestima."

Sem nudez nem conversas sobre sexo

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'Já recebi homens no meu chat com todos os tipos de fetiches imagináveis', diz mulher que trabalha como camgirl
Imagem: iStock

A catarinense Mia, mulher cis de 26 anos, trabalha de forma diferente. Nas informações do seu perfil, avisa que não fica nua nem mesmo no chat exclusivo. Isso não significa, no entanto, que faça menos sucesso do que outras modelos no site em que trabalha. Com mais de 8 mil seguidores e excelentes avaliações, ela mora sozinha e tem como única fonte de renda o camming.

Mia trabalha no site há três anos e alguns meses. No início, seu perfil era aberto a trocas sexuais, como a maioria dos perfis, embora ela se sentisse desconfortável ao exibir partes íntimas do seu corpo. Num retiro de sexo tântrico, teve uma visão que abriu sua cabeça. Questionou a banalização da nudez, o modelo machista da indústria pornográfica e a sua então relação com os clientes. Foi aí que decidiu tentar investir na profissão de maneira alternativa.

"O fato de eu não me exibir e não ter sequer conversas de conotação sexual não me impede de me sentir valorizada ou de ter uma experiência de autoconhecimento na minha ocupação. Minha autoestima cresceu bastante desde que eu comecei a trabalhar da maneira como queria. Afinal, têm homens que entram aqui e pagam centenas de reais para ficar horas só conversando comigo. Homens bonitos, interessantes. Nesses casos em que eu estou confortável, até rolam alguns flertes, mas não passa disso. Eu me sinto respeitada, e também uma mulher interessante", afirma.

As fotos de Mia publicadas em seu perfil têm uma sensualidade subjetiva. Ela explora suas curvas, seu olhar penetrante, seus cabelos castanhos caídos sobre os ombros nus. Mas não há, de fato, nudez alguma.

"Além de explorar a beleza do meu corpo, me sinto feliz com o que faço aqui. Adoro ver se rompendo esse mito de que homem não chora, não tem emoções, sentimentos. Às vezes, muitos dos meus clientes mais fiéis vêm aqui se abrir comigo, e eu gosto de ser esse lugar seguro para eles. Outras vezes, eu simplesmente me divirto. Dia desses, conversei com um senhor de 72 anos que tirou cartas de tarô para mim."